Realizada por e-mail, entre 18 de abril e 26 de maio de 2012, por Henrique Iwao. Traduzida do inglês para o português.
Sobre Product Placements: seu vídeo documenta bem os aspectos políticos e performáticos da peça. Por isso, minhas perguntas tomarão outra direção: do material musical utilizado e da estruturação da peça. Você disse ter usado 70.200 peças de música – como diz o vídeo: “citações”. Como você escolheu estas 70.200 peças? Como você procedeu para sequenciar essa quantidade imensa de amostras, e como as estruturou?
É claro que não cortei à mão, com tesoura. Programei um programa computacional [patch] que reúne aleatoriamente todos os sons de meu HD. O que eu podia modificar era a densidade rítmica e o envelope. Então escolhi as passagens que eu mais gostava, combinando com alguns trechos feitos à mão, como o som do piano, o som de percussão e a citação ao fim. Montei uma forma com duas ondas [dois arcos] e uma coda.
Sobre seus hábitos de escuta: você disse que estes 70.200 representam a grande quantidade de acessos que arquivos de vídeo e áudio recebem na internet. Pode-se dizer então que a música em seu HD representa também a vastidão do que há disponível para se ouvir na internet?
Sim, as 70.200 citações representam os milhões de peças musicais disponíveis, e os 33 segundos são simbólicos para a compressão, a técnica que torna possível tê-las na internet.
O que você costuma escutar?
Eu tive uma formação de música clássica, mas escuto praticamente de tudo.
Você escuta tudo o que há de música no seu HD? Existe nele algo que você guardou, mas nunca escutou?
Claro que não ouço tudo que tenho no meu HD!
Em alguns momentos essas amostras são partículas sonoras ouvidas como texturas e/ou objetos sonoros. Em outros, elas são amostras de tamanho maior, bastante reconhecíveis: piano, caixa clara, uma nota cadencial grave no piano, um desdobramento cafona de acordes no final. Qual a função que eles têm na peça, tanto simbólica quanto estruturalmente?
Musicalmente funcionam como bordas da forma total e articulam o fluxo. Ademais, eu quis sons que ficassem entre a grande massa de amostras que fossem facilmente reconhecíveis. Daí a questão é se estes sons podem ser considerados citações (me perguntaram se o piano era Beatles), ou se eles contam simplesmente como sons livres…
Essa ambigüidade é muito legal. De um modo, você sempre faz pastiches com sons que não têm o que John Oswald chama de “gancho”: não são individualmente identificáveis. Esta é uma coisa que difere a sua estética da do plunderphonics [pilhagem sonora], de Oswald. Você poderia contar um pouco sobre isso? E sobre sua relação com o pastiche musical?
Sim, eu gosto de ir nessa linha com a questão: isso é uma citação clara ou não? Mas, no geral, acredito muito em colagem hoje em dia; somos sensíveis o suficiente para enxergar pastiches em todos os lugares, artigos da Wikipedia, atributos de gênero, filosofia pessoal… “Tudo é um remix”.
À parte a analogia já mencionada, a duração total do vídeo (cerca de 33 segundos) é especialmente relevante para você, numericamente ou por alguma outra razão?
Eu queria que a peça fosse curta, por volta de meio minuto, e queria uma duração que fosse facilmente memorizada.
Sobre o termo “citações”: qual palavra alemã você usaria para isso? E sobre citação: não podemos realmente citar uma letra ou uma palavra, porque são elementos da linguagem ela mesma. De certa forma, se você se aproximar da duração de uma única amostra para cada excerto musical, você se depara com o mesmo problema. Suscita questões sobre a presença do musical: trata-se uma colagem? A amostra está lá, como se tirada de outra música, ou é uma representação de uma amostra, realizada digitalmente, usando os mesmos números daquela que representa. Você acha que o termo “citação” é apropriado para essa circunstância? Você já pensou sobre a relação entre sampleamento e o tamanho da amostra?
Em alemão diríamos zitate, fremdanteile ou fremdmaterial; ou samples, também. Mas, como você disse, é a grande questão não respondida, quando é simplesmente um som [tone] ou quando é uma citação (que pertence a alguém, protegida/proibida pela lei).
Esta questão esteve presente nos debates sobre sua performance? Você entregou milhares de formulários de licenciamento das amostras utilizadas para a GEMA [a sociedade alemã de direitos musicais de performance e reprodução mecânica]. Entretanto, as pessoas, ouvindo sua obra, não podiam dizer se você usou ou não essas peças declaradas nos formulários…
Sim. As pessoas hoje em dia estão completamente incertas sobre quando há uma citação e quando as leis de direitos autorais podem ser aplicadas. Um problema grande para blogues, ao menos na Alemanha. Embutir um vídeo do Youtube num blog já pode ser considerado uma infração de direitos autorais. É terrível.
Quando o tamanho da amostra é menor, perde-se a identidade dela, e músicas distintas podem ser mixadas indistamente. Posso interpretar isso de duas formas: como se minha percepção não fosse rápida o suficiente, não conseguindo distinguir entre partículas sonoras e fragmentos – talvez, se eu fosse um pássaro, conseguisse… Ou então como se houvesse um denominador comum entre cada música – algo como elementos mínimos, iguais. O que você pensa sobre isso?
Na minha pequena peça [Product Placements] eu quis compor indo desde milhares de partículas sonoras (que, claro, criam ruídos) até uma única citação de 2 segundos de duração, ao final (que é definitivamente reconhecível como tal). E no ínterim, então, tem de tudo. Portanto não há como alegar não haver citações nesta peça e não há como alegar só haverem citações nela. Acho isso, musicalmente e conceitualmente, o mais interessante de tudo.
Sobre Compression Sound Art (2009): com a digitalização, tudo pode ser traduzido/transposto/transformado usando as mesmas regras, pois pode ser tratado como número. Vejo que você explora esse nivelamento utilizando exemplos sarcásticos e irônicos. Isto parece mostrar algumas coisas: podemos comprimir informação, mas não significado; podemos trivializar coisas de dois modos, fazendo-as parecer muito iguais (apenas informação na era da informação, dos meios de comunicação de massas [mass media]) ou fazendo-as muito diferentes (com frases como “a bíblia é <a verdade>, o torá não é,” etc). Você teria algum comentário a partir disso?
Boas observações. Mas você poderia também pensar numa mudança de percepção: talvez, para uma mosca, um segundo seja equivalente a uma hora para humanos. Como computadores e alto-falantes podem produzir freqüências que humanos não conseguem ouvir, mas morcegos sim, você poderia pensar que máquinas podem fazer compressões de áudio passíveis de decodificação por outros animais, e por outros computadores. Há quem diga que devemos tratar computadores como sistemas vivos.
Há aí algum trocadilho/crítica sobre o pensamento católico?
Claro, há uma crítica ao pensamento católico.
Há uma seção em que as imagens são a informação. Assim que se compreende isso, é possível descomprimir os dados (memória dos sons) e preencher as brechas sonoras com nossa imaginação. É bem bacana!
Boa e velha teoria semiótica, a diferença entre significado/significante.
Indo mais para o aspecto técnico da peça, como você fez as compressões? Sinceramente, Você atuou como no texto da peça, fez o que o texto diz ter sido feito? Você poderia dar exemplos de como fez?
Não me lembro exatamente, alguns exemplos estão certos (em Beethoven [“sinfonias completas tocadas em 1 segundo”], você até pode escutar o coro da Nona Sinfonia no fim). Alguns não estão. Usei um plug-in VST, da Sony, eu acho.
Existe uma citação famosa do Merzbow, Masami Akita: “Se ‘ruído’ significa som desconfortável, então música pop é ruído para mim” [entrevista com Oskari Mertalo, 1991]. Lembro de você dizer algo similar num vídeo – não me recordo qual; que para você música pop é ruído cotidiano e, portanto, material composicional. Embora semelhante à frase de Masami, tem um significado totalmente diferente. Você poderia comentar?
Ah, obrigado, eu não conhecia essa citação. Na realidade eu quis dizer o mesmo que Merzbow. Nessa entrevista (http://www.kreidler-net.de/__theorie/neural-interview.htm), ao fim, eu disse que gosto de fazer música ruidosa. Música pop é ruído!
Creio que Merzbow quis dizer que desgostava de música pop e a tratava com indiferença (como barulho, indesejável). Sua atitude parece ser mais como: fazer música artística com os escombros, os ruídos da sociedade contemporânea, ou seja, com a música pop. É por isso, eu penso, que você utiliza músicas pop não famosas. Você usa temas famosos principalmente pelo conteúdo semântico, mas não músicas pop famosas pois, uma vez famosas, perdem a qualidade de ruído, esse aspecto de sobras. Você concorda?
Sim, mas ainda é algo que eu desgosto. Eu gosto de citar coisas que eu não gosto.
segundo gx jupitter larsen: “uma xylowave ocorre sempre quando um efeito não tem uma causa, ou uma causa não tem um efeito”.
[uma onda de madeira?]: na antiga sede do ibrasotope, em são paulo, mário del nunzio estava a utilizar seu superxylowavepoder, ao esquentar, com suas mãos, a água que estava dentro da panela sob o fogo. jean-pierre caron, sentado na escada, ficava entrando e saindo da atitude natural, e reduzindo objetos ao redor de fenerich. quando menos esperavam, eu mesmo fiquei invisível (mas só consigo quando estou envolto em escuridão total).
“the joy of noise! root kit zombie (2012), by aquiles guimarães. a truly great accomplishment in music video. an inspiration for the young generation of new composers!” [resenha imaginária, a partir de j.-p. caron]
poulanc é por vezes “bonitinho”. por outras, dá vontade de vomitar; como um doce cheio de açucar refinado, é preciso ocasião.
às vezes me surpreendo: um disco do alexandre lunsqui, de 2008. crescendos no médio agudo, gestos encadeados – parece querer mostrar que ali reside o belo, naquela região, naquele movimento.
dvorák continua um de meus compositores prediletos de antigamente – eu ouço e vibro, com uma pitada de nostalgia. entretanto, diferentemente de quando criança, não faço mais de sua música o centro das atenções (deixo o toca cds num canto e vou ler, arrumar coisas, escrever; quando pequeno, sentava em frente ao toca-discos).
fractais é o pior disco do ulisses rocha: rock sem rock, temas estranhos (de bossas novas etc) fingindo pegada – nem dança nem leveza. muito distante da concentração de ar, ali as coisas são soltas, meio jogadas.
impressionante como ben allison bebe em dave holland: do jazz suave dos anos 1980s, de linhas de baixo ostinato, e eventualmente alguma de baixo andante, durante um solo de outrem. a quantidade de álbuns do jazz composers collective aqui em casa é explicável: um dos únicos grupos do estrangeiro a visitar campinas. meu disco predileto é o piece pipe, que conta com a participação de mamadou diabate, tocando kora.
Por Henrique Iwao. Realizada na sede 1 do Ibrasotope, São Paulo, 28 de março de 2012, 21h.
Improviso em Branco e Preto (carta às videntes), 2004
Qual o critério para escolha do material? Todo ele advém de gravações?
Existem dois momentos, relativamente sutis, que são de sínteses, mas a maior parte do material vem de gravações. De modo similar ao que acontece em O Chá, o material provém de gravações que se faziam presentes na minha coleção de Cds. Entretanto, diferentemente da peça supracitada, o material aqui passou por uma seleção bastante criteriosa.
É mesmo?
As fontes principais são de dois tipos: solos de bateria de bandas de rock; e excertos de percussão de música contemporânea. A partir desses dois tipos de material eu trabalhei com a suposição de que os excertos escolhidos de bandas de rock contêm uma gestualidade e tipos de articulação bastante próximos, mas com características sonoras advindas de escolhas timbrísticas e processos de gravação que as tornam bastante individualizadas.
Uma anotação que eu tenho aqui da época diz o seguinte: ”[Gesto padronizado versus timbres individuais; ênfase na preocupação com som (seguida pela preocupação com a realização virtuosística da performance); performance voltada à demonstração de domínio em determinados padrões realizados de modo altamente energético com grande velocidade].”
E essas características das bandas de rock se contrapõem ao que ocorre no âmbito da “percussão contemporânea”, nas quais os tipos de articulação e gestualidade são bastante diversos, mas não está presente, por exemplo, a preocupação com os tipos de gravação ou o que isso influencia na característica sonora da obra.
Nessa peça buscou-se a manutenção de um nível de energia bastante alto durante sua maior parte – exceto os momentos de síntese, mais ou menos -, e isso foi determinante para a escolha dos trechos que entraram na peça. Ou seja, são matérias que advêm de momentos com uma atividade bastante alta, em que as pessoas tocam um monte de coisa.
Tem outra coisa. O solo dos bateristas de rock são majoritariamente no estilo “discos de guitarrista”.
O que isso quer dizer?
Rock instrumental com um milhão de notas por segundo. Nos meus arquivos, consta que usei as seguintes músicas:
Reynold Carlson (Joey Tafolla: Out of the Sun)
Richard Christy (Death: The Sound of Perseverance)
Anders Johansson (Rolf Munkes: No more Obscurity)
Scott Travis (Racer X: Live Extreme Volume)
Scott Travis (Judas Priest: Painkiller)
Deen Castronovo (Marty Friedman: Dragon’s Kiss)
Marcel Cardoso (Diablerie: The Breach of the Masquerade)
Gerald Kloos (Rolf Munkes: No more Obscurity)
Mike Portnoy (Dream Theater: Awake)
Mike Terrana (Mike Terrana: Shadows of the past)
São coisas que você escutava?
São coisas que tinham na minha coleção de discos. As músicas contemporâneas utilizados foram:
Karlheinz Stockhausen: Gruppen (Orquestra Filarmônica de Berlim, Claudio Abbado)
Bruno Maderna: Hyperion (Asko Ensemble, Peter Eotvos)
Marc Monnet: Le Cirque (Armand Angster)
Allain Gaussain: Chakra (Quarteto Arditti)
Ah, eu imaginava que era isso mesmo (quanto às músicas contemporâneas; as músicas de rock eu desconheço). Eu ouvia seus CDs. Naquela época não era tão fácil achar essas coisas. Só não lembro do Gaussain…
Agora, eu queria saber se, afora questões mencionadas de escolha, existe alguma outra que se relaciona com essa primeira de “fazer uma música usando os CDs disponíveis, com trechos de percussão”? Por que pegar CDs da sua coleção, que envolvem percussão, e fazer uma música?
Ok. Estamos no início do ano de 2004; eu estava começando a fazer coisas no computador, com eletrônica, etc. Até esse momento eu tinha feito uma única peça, Nec Spe Nec Metu, que é feita somente utilizando síntese. Se eu me lembro bem, eu tinha vontade de trabalhar com outras coisas, mas essa vontade era restringida por outros fatores, tais como, por exemplo, a falta de um local para trabalho caso eu quisesse gravar coisas. Tive uma experiência frustrada com isso, no estúdio na Unicamp, nessa época.
A falta de intérpretes para tocar música escrita, que eu fazia bastante na época – elas tinham que ficar na gaveta. Então eu me vi na situação de fazer com o material que eu tivesse à disposição. Nesse momento não existe uma razão ideológica para trabalhar com os CDs, era uma questão de possibilidade mesmo, de realização da música. E se eu tinha vontade de trabalhar um material como esse, era muito mais fácil recorrer ao que estava na mão do que lidar com uma outra situação que envolveria a cooptação de pessoas e convencimento, e que me parecia muito mais estressante e menos recompensadora musicalmente.
Quando você em fala material como esse, isso significa que você já tinha em mente uma obra a ser feita ou um material a ser trabalhado?
Nesse caso, evidentemente, sim. Como seria a articulação de um excerto para outro, sim. Na medida que eu comecei a composição da peça ficou razoavelmente clara a ideia formal.
Mas a composição de uma peça eletroacústica implica em certas coisas, certas especificidades…
No momento que eu comecei a compor, a ligação com as gravações, as diferenças de timbre se pronunciaram e isso se mostrou importante. Eu procurava similaridades gestuais e de como isso poderia se relacionar com uma peça do Xenakis, que é o que ocorre numa espécie de clímax da peça, nos 4’54-5, na qual existe uma fusão de timbres de rock e de percussão contemporânea. Pelo que me lembro foi uma das primeiras coisas que fiz nessa peça.
A ideia da colagem, de usar trechos de peças, já existia antes desse contato com as gravações?
Eu poderia pensar uma peça para percussão que teria características gestuais similares a essa peça, mas que deveria levar em consideração outros aspectos. Mas a situação prática não me permitia nem pensar nessa alternativa, se eu quisesse uma realização sonora da peça, a curto prazo.
E sobre as transições entre cada excerto?
Isso é uma coisa que ficou bastante informal nessa peça, até o meio dela especialmente. Eu ia encadeando trechos que tivessem alguma característica que permitisse encadeamento. Até o meio ela tem de fato essa característica de improviso, uma coisa segue a outra e eu tento fazer com que aquilo tenha sentido. Ou seja, entre um gesto similar ou uma articulação, às vezes, tem um pequeno ralentando, é tudo caso a caso.
Na segunda metade, depois do trecho tecno, tem umas coisas que são determinadas por interferências – joguinhos composicionais. E a outra que tinha também eram os acordes orquestrais pesados que articulavam alguns momentos de transição entre fragmentos.
Do Maderna…
Maderna, Stockhausen, Kurtag e Xenakis, eu acho.
E no trecho tecno existe algum tipo de, de certa forma, clímax; ele é um momento que se destaca. Pelo próprio fato de você chamar de tecno, há uma referência?
Na verdade meu interesse musical em relação à música tecno e de pista em geral é quase nulo. Eu suponho que esse trecho tenha um tanto a ver com uma peça que Bernardo fez na época, Frankfurt, Frankfurt. Mas era algo subjetivo, uma brincadeira, uma pequena resposta, uma outra possibilidade.
Um outro nome desse trecho tecno pra mim é trecho matriz1. Especialmente quando entram os acordes de Stockhausen.
E, assim, de modo algum eu vejo como um clímax da peça. Ele é uma espécie de intruso.
Intruso como uma dança no meio do Concerto para Violino de Mozart, o concerto.
Isso.
Há um contraste claro nesse trecho. Os ritmos periódicos, pulsantes, e finalmente os acordes. Antes, estes acordes só pontuavam. Poderia ser lido como um comentário acerca de um encontro de Stockhausen e os Tecnocratas?
A questão era puramente do material musical mesmo. Não tem nada a ver com esse artigo2.
Algum motivo especial para os acordes de Gruppen?
Os acordes que articulavam a primeira parte da peça eram mais ou menos similares a isso aí, em termo de instrumentos e sonoridade.
Certo. Uma última pergunta. Pelo que conversamos e pelo que conheço de ti, são dois períodos de escuta, o Rock que você ouvia antes, principalmente quando adolescente e a música contemporânea, a qual você se dedicou depois. Na peça, há uma tentativa, bem sucedida ao meu ver, de juntá-los, de um modo que valorize ambos. Como isso se deu?
(pausa longa) Não sei. Não sei responder a essa questão.
***
Vermelho (2008)
Em Vermelho temos, de material retirado de outras fontes, 66 excertos de bandas de música de metal violento do mal, metal do capeta. Diferentemente da outra peça, esses 66 trechos foram coisas que baixei da internet só para isso mesmo; não faziam parte de coisas que eu ouvia ou da minha coleção de discos.
A outra coisa principal são diversas versões da Internacional, nove versões iniciais que são depois misturadas, via phase vocoder (da Internacional em albanês com a em chinês, que gera uma coisa “sino-albanesa”). Uma terceira coisa relevante nessa peça é que a estrutura dela é derivada de um aspecto formal de outra peça, Il Canto Sospeso, de Luigi Nono.
Por que a estrutura?
Porque Nono é talvez o exemplo mais recorrente de compositor assumida e engajadamente comunista.
E isso se liga ao conceito, “Vermelho”?
Exato.
Pode falar sobre isso?
Provavelmente de um ponto de vista simbólico, o vermelho nessa peça se associa mais enfaticamente a comunismo e sangue.
Por que utiliza-lo como símbolo para isso?
Não tem porquê. Na minha cabeça é isso.
Qual a relação do tema com a dança?
Foi a Melina que disse que chama Vermelho; a relação é nenhuma e elas ficaram duas semanas debatendo o que era vermelho para a dança. Mas, no meu método de trabalho com a Melina na época, isso era absolutamente desconsiderável – elas iam fazer uma coisa e eu ia fazer outra. Essas duas coisas seriam eventualmente juntadas. Aí tinha essa temática: “vermelho” e em algum momento foi sugerido que eu pensasse em coisas que eu associasse à cor vermelha. Para mim são essas duas coisas que foram ditas.
Foi como um ponto de partida?
Foi um ponto de partida para a formulação da estrutura da peça, cujas proporções são derivadas da série do Nono, para a escolha desses dois tipos de material.
E sangue tem a ver com o número 66?
Sangue tem a ver com canções como Ritual dos Depravados, Sangue Nórdico, Automutilação, ou Portador do Terror; Campos de Devastação, Assassino Serial, Necrófago.
Sim, mas a temática dessas canções me parece bastante associável ao diabo, numerologicamente ligado ao número 666 e derivações.
Sim, tem.
Esta peça tem basicamente mais dois tipos de material. Coisas sintetizadas e trechos de uma peça minha que é anterior e/ou posterior, que é Fragmentos de Vermelho. Fragmentos de Vermelho é uma peça composta por 30 micropeças, cada uma com uma duração algo entre 0.5 e 2 segundos.
Também uma trilha para dança na qual Juliana França pediu “uma música com trinta músicas de um segundo cada”.
Como você usa como material? Deixa claro as referências?
Os 66 excertos de metal barulhento são ultrafragmentados e recebem diversos tipos de tratamento sonoro: distorção, equalização, modulação em anel, outros tipos de modulação, etc. A duração deles é em geral bastante curta, sendo que o menor tipo tem 17mm de segundo, entre 17ms e 0.5s. Seis deles foram escolhidos como excertos referenciais e são um pouco mais longos. O mais longo deles com duração de 18s, ou seja, estes seis são passíveis de identificação. Os outros, me parece impossível. Esses trechos são das bandas mais famosas: Burzum, Deicide, Marduk, Emperor, Dark Throne, Ulver. E aí foram elaboradas sequências desses fragmentos, relacionados à série do Nono.
O segundo tipo de material, que são trechos de Fragmentos de Vermelho tratados com extensão temporal, ou seja, aquelas coisas que duram um ou dois segundos foram expandidas para coisas como um minuto. Na Internacional tem os vocoders.
A organização da peça é toda baseada em uma estrutura do Nono, que respeita os quatro tipos de material, mas as organizações são derivadas de um tratamento serial. Essa peça é bastante estrutural, bastante formal, as coisas são usadas de acordo com o que foi pré-definido pelo pensamento estrutural.
Me lembra Hymnen, sempre me lembrou.
Certamente eu ouvi o Hymnen, mas eu não analisei, não tenho especial apreço. Mas no rascunho da peça tem escrito: “Controle de densidade e ‘serialismo'”, que são coisas que estão bastante presentes, creio que em Hymnen. Outra coisa anotada em concepções é “poliparametrização”.
Em Stockhausen tem todo um discurso sobre a utilização dos hinos.
É. Mas não, na minha não tem nada disso aí.
[fim da entrevista, Mário está cansado e quer ir, já estou ocupando muito de seu tempo!]
1Referência ao filme Matrix (1999), dos irmãos Wachowski; mais especificamente à trilha sonora, de Don Davis, que figuraria “acordes similares” ao d clímax de Gruppen, de Stockhausen.
2Referência a Stockhausen, Karlheinz et al. “Stockhausen Vs. the ‘Technocrats”. Publicado na antologia Audio Culture: Readings in Modern Music; COX, C.; WARNER, D. (Eds). Nova York: Continuum, 2004. p. 381-385.
escreveu alfredo votta jr., por conta do concerto: “a indiferença é o alter-ego da vaia” (via nigel funningham) e “afinal, falar é de prata, mas o silêncio é de ouro” e “coelho caolho” (um estudo apócrifo dos irmãos fields sobre o “bad habit rabbit” de funningham).
quando encontrei marcelo onofri, no bar almanaque, ele disse: “mas horas, olha quem está aqui”. e eu: “quem é vivo sempre aparece”. e minha mãe: “o bom filho à casa retorna”.
steal this film, sobre compartilhamento de dados na internet, com participação do pirate bay e do piratebyran. legendas (incluindo em português) podem ser baixadas aqui: http://www.stealthisfilm.com/Part2/download.php
tão cansado do fogo tão casando da fumaça tão cansado do fogo tão casando da fumaça me envie um anjo me salve [me liberte] me envie um anjo me salve eu quero ter um dia bom hoje eu quero ter um dia bom hoje eu quero ter um dia bom hoje bom dia hoje cansado afogado indo tão mal cansado afogado indo tão mal me envie um anjo me salve me envie um anjo me salve
tão casado de : : tão cansado de …. ;; tão casado de : : tão cansado de …. ;; me envie um anjo me salve me envie um anjo me salve eu quero ter um dia bom hoje eu quero ter um dia bom hoje eu quero ter um dia bom hoje bom dia hoje tão cansado de ter medo tão cansado da escuridão tão cansado de ter medo tão cansado da escuridão me envie um anjo me salve me envie um anjo me salve eu quero ter um dia bom hoje eu quero ter um dia bom hoje eu quero ter um dia bom hoje bom dia hoje
[david lynch, gooday today, com dean hurley, álbum: crazy clown time, 2011. director do vídeo: arnold de parscau, cinematografia: jonathan bertin, antoine bon]
“durante todo esse tempo eu estive intranquilo. mas a intranquilidade na calma é como o prenúncio da morte: todos vamos morrer algum dia. e se não há um evento mais drástico, o que é essa intranquilidade senão um adiar e um esperar, sem propósito?”
gostaria de lembrar de onde vem essas palavras, de cortazar ou borges, ou mais remotamente de kafka, autores lidos faz tempo. o fato é que a sombra das palavras tem me rondado, e mais que isso: o sentido vago de algo que fica entre o esquecimento e a lembrança: um vapor do pensamento.
nessa dúvida, minhas palavras – delas irrompem palavras de outros, como um sotaque espanhol imaginado. dos espaços entre elas, vazios se fazem significativos, prenhes de ausências (do quê?), que irrompem ou que se escondem, correndo de um lado ao outro.
por isso a dúvida sobre se colocar ou não aspas no primeiro parágrafo; por isso preciso voltar, terminar o texto; por isso continuarei intranquilo.