li o livro synthethic philosophy of contemporary mathematics, de fernando zalamea,entendendo muito pouco. no site da urbanomic consta que é um livro para leigos. mas não ter notação matemática de modo algum significa isso. a matemática, da década de 50 para frente, se ramificou muito e criou inúmeros novos conceitos; e isso a ponto de zalamea poder escrever quase 400 páginas que soam exotéricas nível “hegel para desavisados”. de forma que um leitor como eu (que estudou na universidade matemática apenas até estocásticos e séries infinitas de integrais) lê o livro deslizando de uma palavra a outra sem com isso obter quase nenhum sentido das frases, e em dúvida do real significado das palavras.
traduzi um depoimento (pg. 152-3) do figurão da matemática contemporânea, alexander grothendieck. este, apesar de não ilustrar a resenha acima, é de interesse pelo modo com que articula inventar e descobrir. se algum leitor desse blogue entende de teoria das categorias e quiser me indicar leituras e vídeos, agradeço.
A estrutura de uma coisa não é de modo algum algo que nós possamos ‘inventar’. Nós podemos apenas pacientemente, humildemente colocá-la em jogo – fazendo a conhecida, ‘descobrindo-a’. Se há inventividade nesse trabalho, e se nos acontece de realizar algo como que o trabalho de um ferreiro ou de um pedreiro incansável, isso não é nada como a ‘formação’ ou a ‘construção’ de estruturas. Elas não esperam por nós para ser, e para ser exatamente como elas são! É, pelo contrário, para expressar, o mais fielmente que podemos essas coisas que estão sendo descobertas e sondadas – essas estruturas reticentes para as quais nós tentamos tatear nosso caminho com uma linguagem talvez ainda balbuciante. E então nós somos levados a constantemente ‘inventar’ a linguagem que possa expressar, cada vez mais finamente, a estrutura íntima da coisa matemática, e ‘construir’, com a ajuda dessa linguagem, completamente e passo a passo, as ‘teorias’ responsáveis por dar conta do que foi apreendido e visto. Há um movimento contínuo e ininterrupto de vai-e-vem aqui, entre a apreensão das coisas e a expressão do que foi refinado e recriado enquanto o trabalho corria, sob a constante pressão das necessidades imediatas.
na livraria de um simpático senhor para o qual o melhor livro já escrito é tuareg, de alberto vázquez-figeuiroa, no centro de belo horizonte, descubro que há uma compilação pós-morte de máximas de schopenhauer intítulada a arte de ser feliz. resolvo comprar, na certeza de encontrar logo no começo do mesmo a afirmação da impossibilidade real da felicidade. satisfeito, considero a máxima 36 representativa:
O meio mais seguro de não se tornar muito infeliz consiste em não desejar ser muito feliz, portanto em reduzir as próprias pretensões a um nível bastante moderado no que diz respeito a prazeres, posses, categorias, honra etc., pois a aspiração à felicidade e a luta para conquistá-la por si só já atraem grandes desventuras. A moderação, por sua vez, é sábia e aconselhável, porque é facílimo ser muito infeliz, enquanto ser muito feliz não apenas é difícil, como também é totalmente impossível.
de forma que a melhor opção de todas é estar sereno (que é uma qualidade que depende em 90% da sua disposição interna e não do mundo exterior), e estando sereno, apenas estar sereno: sem motivos. assim, descobrir o verdadeiro egoísmo, o egoísmo da dissolução sem esforço do eu. auto-ajuda.
após pagar, o livreiro me confidenciaria: “você sabe que a humanidade nos trouxe apenas dois filósofos. um deles foi platão. o outro…” e então olharia pro manualzinho em minhas mãos.
listas de fim de ano tem a vantagem de tornar estrategicamente ruim lançar álbuns em dezembro, deixando o mês inteiro como “momento de ouvir muitas músicas e gostar de poucas”; em algum momento, inclusive, a questão, com a internet, é ir baixando e deletando, ir ouvindo e pulando. nesse esquema ouvi trêz álbuns até o final, por enquanto: sexwitch; music in exile; garden of delete. a outra vantagem é de mostrar como nosso hábitos de linguagem e de construção de sentido estão cheio de generalizações mal definidas, picuínhas transformadas em condições existenciais, percepções complexas feitas arrotos verbais etc. enfim, é o momento de transpor a forma funil à toda e qualquer incomensurabilidade e se regozijar na linguagem publicitária, esse bem universal.
em uma relação ambígua quanto a isso ofereço uma pequenina lista de não-melhores de 2015. com isso quero dizer: álbuns que eu considero valerem muito a pena ouvir; álbuns que me fizeram pensar, que me fizeram reavaliar o que para mim é escutar; álbuns que me mostraram saídas e caminhos diversos e interessantes, habilidades e construções que eu mesmo não iria atrás mas admiro muito. por fim, são álbuns todos eles de colegas, o que quer dizer: pessoas que trombo por aí. não necessariamente o que valorizamos mais está longe; pode estar bem próximo. ademais, a lista é propositadamente curta: há muita coisa boa sendo feita, mas com todas essas listas, ficarei feliz se o leitor dessa postagem ouvir um álbum destes até o final.
£ stefan prins, peter jacquemyn, matthias koole – mármore e murta: como disse marco scarassatti, “música improvisada a valer”. energia, equilíbrio, consistência, mas sem perder a dose de risco que é o melhor complemento que se pode ter ao domínio.
≠ flores feias – f .˙. f .˙.: canções levemente desafinadas e riffs de rock que se atêm ao simples; cortes abruptos e caseiros; som sombrio.
¢ macos campello – bamsa: improvisos de guitarra solo; um fundo de samba (de standards a lá bailey); sequências extravagantes e macromontagens como num filme de goddard.
∞ god pussy – animal: ruidera visceral, recortada em faixas/sessões, com a diferença importante de que elas seguem por 3 horas a fio.
¶ bella – cantar sobre os ossos: no lado b, a relação sobreposta entre as diversas camadas aí distorcidas da colagem de obras de mulheres e a voz e seu canto tanto ritualístico quanto desconcertante. a construção no não encaixe, na retomada soterrada.
§ j.-p. caron – breviário: álbum de tom lírico e confessional: aproximações entre música e sentimentos cotidianos. acompanha ou é acompanhada por belos poemas-partitura (baixe o álbum). entrelaçamentos de uma vida.
em maio comecei a integrar a equipe de colunistas da revista linda – cultura eletroacústica, do coletivo nme. resgatando a prática anti-stress que tínhamos no ibrasotope entre 2010-2, na qual jogávamos peteca na sala de concertos, com todo o equipamento montado (incluindo laptops e instrumentos), chamei minha contribuição mensal de hora da peteca: grandes álbuns desconhecidos ou nem tanto. acredito que a ambiguidade do ou dá um sabor especial ao título.
as duas primeiras resenhas encontram-se nos elos abaixo.
existe um problema em textos sobre deleuze. é que deleuze gosta de separar polos e quase sempre acaba por valorizar um lado em detrimento do outro – nômades contra sedentários, por exemplo. existe um aristocracismo grande aí. e quando se é tomado de paixão por deleuze, pelo seu pensamento, como é o caso do livro de regina schöpke (por uma filosofia da diferença: gilles deleuze, o pensador nômade, edusp, 2004), mesmo assim ocorre que, ao explicar, ao clarificar deleuze, não se está de fato criando conceitos, rasgando o caos, fazendo máquinas de guerra. é o estado – a academia, criando especialistas em deleuze – deleuzianos – todos eles do lado dos operários da filosofia, reforçando a canonização desse enorme pensador, trabalhando para a territorialização do seu pensamento, para uma maior significação de seus conceitos.
não que isso seja ruim. qual o problema, afinal, de deleuze ser o hegel da segunda metade do XX?
se deleuze, seus textos, são uma força de fora a impulsionar o pensamento, uma pequena máquina a incitar paixões, nem por isso abordagens explicativas podem isentar-se da acusação que tão bem explicitam. porque se fosse diferente, o título do livro específico citado seria “por filosofias da diferença: gilles deleuze, um pensador nômade”.
cansado de ouvir tanta porcaria nessas listas de final de ano (ou pior – boas canções de samba rock e afins), e não que eu não tenha descoberto algumas coisas legais, mas sem paciência para compilar algo mais extenso, e entrar na onda, deixo aqui 4 videoclipes, não tanto pelos vídeos (embora os assopradores de apitos seja uma das melhores coisas que já vi nesse sentido), mas porque ouvi muito as músicas contidas neles (o critério mesmo é: “escuta viciante”).
o livro de rodolfo caesar sobre sua música homônima {círculos ceifados, 7 letras, 2008} sofre justamente de academicismo: está a todo tempo defendendo-se, buscando aliados, justificando suas escolhas – como se houvesse um modo acadêmico sendo transgredido; como se o texto precisasse ser resguardado. mas nesse movimento, justamente esse modo é reforçado e recolocado a todo tempo. não que ele pretenda ser diferente, mas ouvindo numa ocasião acadêmica, muitos anos atrás (2004? ou ainda antes), a palestra equivalente, tinha a impressão viva de estar em presença do contrário – de uma rota para fora da universidade, estando dentro. hoje, fora, mesmo que goste da música e do livro, pesa-me o tom autoirônico, quiçá cínico.
o texto, portanto, deixa claro: não deve ter uma força que possa ser equivalente à da música; sua fabulação está entre aspas, como “fabulação”. não é como the third man, de erik bünger, palestra-vídeo que eu fiquei de traduzir para o português mas não o fiz.
lucas araújo perguntou-me: “e agora que a mandinga performática não deu certo?”. o brasil passou às quartas de final da copa do mundo; minha performance-álbum-anti-musical se resumia a um evento de primeira fase. então o quê? bem, resta terminar a outra performance, “não assistir a/à copa do mundo de futebol 2014”, continuando a desviar o olhar de todas as televisões ligadas e evitar locais com imagens de jogos. para quem ainda não arriscou uma escuta do álbum, ele pode ser baixado aqui. abaixo, a resenha (ao meu ver excessivamente dramática) escrita por blu simon wasem, que presenciou #obrasilnãochegaàsoitavas 3:
Fiquei muito comovido quando recebi a mensagem notificando sobre este disco/performance, pois eu também não gostaria de ver nenhum jogo da seleção brasileira. Estava em São Paulo nos dois primeiros jogos, mas não fiz minha própria audição lá, pois estava me ocupado em filmar imagens da avenida Paulista vazia com o exército ao fundo. Mas aí calhou de estar na própria casa do compositor na ocasião do jogo Brasil x Camarões. Então eu pude experienciar a sua peça sob a maior potência. Hoje tenho minhas dúvidas sobre o meu pseudo-radicalismo anti-copa, sobre minha saúde mental após esta escuta da peça, e sobre as intenções pervertidas do artistas. Não pude permanecer no jardim após o intervalo, e mesmo a 2 quarteirões ainda ouvia o ódio, o pânico, o desespero que essa peça emana, que nada mais é do que um reflexo da situação atual do país.
#obrasilnãochegaàsoitavas 1, 2014-06-12, 17h: domicílio de iwao, belo horizonte.
#obrasilnãochegaàsoitavas 2, 2014-06-17, 16h: georgette zona muda, sede antiga, belo horizonte.
#obrasilnãochegaàsoitavas 3, 2014-06-23, 17h: domicílio de iwao, belo horizonte.
1. a vida e obra. escolher compor ou não compor: ‘seria melhor não compor uma obra’. a violência do nascimento, tanto quanto da morte; da criação, tanto quanto da destruição. porque eu deveria preferir produzir a não produzir?
2. jogos mortais: “A morte por gás e morte nuclear são maneiras de fazer que o horrível da morte seja coisa nossa, esteja, de alguma maneira, sob nosso controle. É possível imaginar alegria mais intensa que do controle da morte? Pareceria como se o projeto, consciente ou inconsciente, do homem fosse fazer deste mundo um mundo socialmente horrível, para não perceber que ele é horrível.” [88]
3. camiseta com os dizeres ‘PELA APOLOGIA ACRÍTICA DA VIDA’; outra, menos efetiva, com ‘PELA MORTE {suicídio, abstenção, aborto}’.
4. para serem consistentes as éticas afirmativas não poderiam ser afirmativas. contra nietzsche e sua gritaria em pról da vida, cabrera indica o caminho de uma ética negativa e autodestrutiva. (um cristianismo ético-crítico, deve abarcar a possibilidade do suicídio, da abstenção, e eventualmente dos pequenos assassinatos)
5. “O suicida seria perdoado se ele partisse com algum rumo. Mas o que o suicida radical quer é, simplesmente, sair daqui. / O suicida é um viajante kafkaniano.” [57]
{cabrera, julio. a ética e suas negações. rocco, 2011}
escreve giorgio agamben em um livro interessante, sobre o qualquer (algo entre o particular e o universal, o individual e o genérico), qual seja, a comunidade que vem (autêntica, belo horizonte, 2013, p. 77-79):
Qual pode ser a política da singularidade qualquer, isto é, de um ser cuja comunidade não é mediada por nenhuma condição de pertencimento (o ser vermelho, italiano, comunista) nem pela simples ausência de condições (comunidade negativa, tal como foi recentemente proposta na França por Blanchot), mas pelo próprio pertencimento? Um mensageiro vindo de Pequim traz alguns elementos para uma resposta.
O que mais impressiona nas manifestações do mês de maio na China [1989] é, de fato, a relativa ausência de conteúdos determinados de reivindicação (democracia e liberdade são noções genéricas e difusas demais para constituírem o objeto real de um conflito e a única demanda concreta, a reabilitação de Hu Yao-Bang, foi prontamente [78] concedida). Tanto mais inexplicável parece a violência da reação estatal. É provável, todavia, que a desproporção seja apenas aparente e que os dirigentes chineses tenham agido, do ponto de vista deles, com maior lucidez que os observadores ocidentais, exclusivamente preocupados em trazer argumentos à sempre menos plausível oposição entre democracia e comunismo.
Pois o fato novo da política que vem é que ela não será mais a luta pela conquista ou pelo controle do Estado, mas a luta entre o Estado e o não-Estado (a humanidade), disjunção irremediável entre as singularidades quaisquer e a organização estatal. Isso não tem nada a ver com a simples reivindicação do social contra o Estado, que, nos anos recentes, encontrou muitas vezes expressão nos movimentos de contestação. As singularidades quaisquer não podem formar uma societas porque não dispõem de nenhuma identidade para fazer valer, de nenhum laço de pertencimento para ser reconhecido. Em última instância, de fato, o Estado pode reconhecer qualquer reivindicação de identidade que seja – até mesmo (a história das relações entre Estado e terrorismo, no nosso tempo, é sua eloquente confirmação) a de uma identidade estatal no interior de si mesmo; mas que singularidades façam comunidade sem reivindicar uma identidade, que homens copertençam sem uma condição representável de pertencimento (mesmo que seja na forma de um simples pressuposto) – eis o que o Estado não pode em caso algum tolerar. Pois o Estado, como mostrou Badiou, não se funda no laço social, do qual seria expressão, mas na sua dissolução, que ele interdita. [79] Por isso, relevante não é jamais a singularidade como tal, mas somente a sua inclusão em uma identidade qualquer (mas que o próprio qualquer seja retomado sem uma identidade – essa é uma ameaça com a qual o Estado não está disposto a compactuar).
(…)
A singularidade qualquer, que quer se apropriar do próprio pertencimento, do seu próprio ser-na-linguagem e recusa, por isso, toda identidade e toda condição de pertencimento, é o principal inimigo do Estado. Onde quer que essas singularidades manifestem pacificamente o seu ser comum, haverá um Tienanmen e, cedo ou tarde aparecerão os carros armados.
O mais belo trecho da primeira parte do livro, na página 61: para resolver o problema da comunicação há de se portar de tal forma que o problema da comunicação desapareça…
(…) se os homens, em vez de procurarem ainda uma identidade própria na forma imprópria e insensata da individualidade, conseguissem aderir a essa impropriedade como tal, fazer do próprio ser-assim não uma identidade e uma propriedade individual, mas uma singularidade sem identidade, uma singularidade comum e absolutamente exposta – isto é, se os homens pudessem não ser-assim, nesta ou naquela identidade biográfica particular, mas ser o assim, a sua exterioridade singular e o seu rosto, então a humanidade teria acesso pela primeira vez a uma comunidade sem pressupostos e sem sujeitos, a uma comunicação que não conheceria mais o incomunicável.