há um provérbio japonês que diz 多芸は無芸, literalmente “versatilidade: falta de talento/falta de realizações”. no livro a vida obscena de anton blau, maria cecília gomes dos reis exemplifica esse pensamento, escrevendo (editora 34, 2011, pag. 49-50):
Contudo, num processo discreto e nada incomum, Anton sem perceber passa do ponto em que ainda é muito cedo para se empenhar ao momento em que já não há mais o que fazer. É um mau passo muito frequente, no qual muitas vidas empacam para sempre, e vai do instante em que ainda se tem todo o tempo imediatamente ao minuto em que já estamos irremediavelmente atrasados. O garoto, além da boa compleição física e de extraordinária beleza, tem amplos recursos – curiosidade, memória, esperteza, inteligência e muita imaginação -, mas pouca precisão, escasso senso de urgência e diminuto avanço sobre as oportunidades – nunca vê na conjuntura real a ocasião ideal para lançar-se nela com tudo. Em suma, tem talento para ser o que quiser, mas em nada se empenha o suficiente. Aquilo que sobra na piscina – ímpeto e vontade de vencer – é justamente o que lhe falta no mar da vida, e, como aquelas pessoas prestes a mergulhar – “ainda não desta vez: virá uma onda melhor” -, nunca chega o momento de abraçar a circunstância que se lhe apresenta. O garoto pula então de galho em galho querendo colher apenas as flores da vida. Pratica natação até perceber que, para seguir adiante, deve redobrar o esforço e firmar a mira. E brotam nele então as novas aspirações da juventude – Anton vê longe e pensa grande.
postado em 30 de junho de 2017, categoria excertos : anton blau, japonês, maria cecília gomes dos reis, provérbios, vazio existencial, versatilidade
em drone and apocalypse: an exhibit catalog for the end of the world (zero books, 2015), cynthia wey (a personagem de joanna demers), conta que:
Mizutani tendia para o folk rock, e o Les Rallizes Dénudés parecia preparado para o sucesso. Mas em março de 1970, o baixista do LDR, Moriyasu Wakabayashi, junto a outros oito, sequestraram um jato da Japanese Airlines usando bombas tubo e espadas samurai. As consequências desse evento foram desastrosas para Mizutani e o LRD. Wakabayashi acabou em Pyongyang, Coréia do Norte, depois que os sequestradores cederam do seu plano inicial de voar para Cuba. Todos os passageiros foram eventualmente soltos, ilesos, mas a CIA concluiu que músicos do underground japonês eram uma ameaça aos interesses estados unidenses no leste asiático. LRD desbandou; outros músicos evitaram Mizutani; a CIA havia atado suas mãos pelos próximos meses. Mizutani se escondeu, primeiro em um bairro luxuoso em Tóquio e depois no monte Osore, em Honshu do norte, o portal para o inferno, segundo lendas locais.
postado em 2 de fevereiro de 2017, categoria excertos, tradução : cia, cynthia wey, joanna demers, ldr, les rallizes dénudés, mizutani, moriyasu wakabayashi, pyongyang, sequestro
sempre fui fascinado por esses três prefácios, coletados abaixo – bataille, nietzsche, wittgenstein. megalomania sem eu.
1. georges bataille – teoria das religiões, 1948 (publicado em 1973). trad. de fernando scheibe, autêntica, 2015.
Onde este livro está situado
O fundamento de um pensamento é o pensamento de um outro, o pensamento é o tijolo cimentado em um muro. É um simulacro de pensamento se, no retorno que faz sobre si mesmo, o ser que pensa vê um tijolo livre e não o preço que lhe custa essa aparência de liberdade: ele não vê os terrenos baldios e os amontoados de detritos a que uma vaidade suscetível o abandona com seu tijolo.
O trabalho do pedreiro, que compõe, é o mais necessário. Assim, os tijolos vizinhos, num livro, não devem ser menos visíveis que o novo tijolo que o livro é. O que é proposto ao leitor, de fato, não pode ser um elemento, mas o conjunto em que ele se insere: é toda a composição e o edifício humanos que não podem ser apenas amontoamento de cacos, mas consciência de si.
Em certo sentido, a composição ilimitada é o impossível. É preciso coragem e obstinação para não perder o fôlego. Tudo leva a largar a presa que é o movimento aberto e impessoal do pensamento pela sombra da opinião isolada. É claro que a opinião isolada é também o meio mais rápido de revelar aquilo que a composição é profundamente: o impossível. Mas ela só tem esse sentido profundo sob a condição de não ser consciente dele.
Essa impotência define um ápice da possibilidade ou, ao menos, a consciência da impossibilidade abre a consciência a tudo aquilo que lhe é possível refletir. Nesse lugar de ajuntamento, onde a violência impera, no limite do que escapa da coesão, aquele que reflete na coesão percebe que não há mais lugar para ele.
2. friedrich nietzsche – ecce homo, 1888 (publicado em 1908). trad, de paulo césar de souza, companhia das letras, 1995.
Prólogo: 4.
Entre minhas obras ocupa o meu Zaratustra um lugar à parte. Como ele fiz à humanidade o maior presente que até agora lhe foi feito. Esse livro, com uma voz de atravessar milênios, é não apenas o livro mais elevado que existe, autêntico livro do ar das alturas – o inteiro fato homem acha-se a uma imensa distância abaixo dele -, é também o mais profundo, o nascido da mais oculta riqueza da verdade, poço inesgotável onde balde nenhum desce sem que volte repleto de ouro e bondade. Aqui não fala nenhum “profeta”, nenhum daqueles horrendos híbridos de doença e vontade de poder chamados fundadores de religiões. É preciso antes de tudo ouvir corretamente o som que sai desta boca, este som alciônico, para não se fazer deplorável injustiça ao sentido de sua sabedoria. “As palavras mais silenciosas são as que trazem a tempestade, pensamentos que vêm com pés de pomba dirigem o mundo -”
Os figos caem das árvores, são bons e doces: e ao caírem rasga-se sua pele rubra. Um vento do norte sou para os figos maduros.
Assim, como figos vos caem esses ensinamentos, meus amigos: bebei seu sumo e sua doce polpa! É outono em torno e puro céu e tarde.
Aí não fala um fanático, aí não se “prega”, aí não se exige fé: é de uma infinita plenitude de luz e profundeza de felicidade que vêm gota por gota, palavra por palavra – uma delicada lentidão é a cadência dessas falas. Tais coisas alcançam apenas os mais seletos; ser ouvinte é aqui um privilégio sem igual; não é dado a todos ter ouvidos para Zaratustra… Com tudo isso, não será Zaratustra um sedutor? … Mas o que diz ele mesmo, ao retornar pela primeira vez à sua solidão? Precisamente o oposto do que diria em tal caso qualquer “sábio”, “santo”, “salvador do mundo” ou outro décadent… Ele não apenas fala diferente, ele é também diferente…
3. ludwig wittgenstein – tractatus logico-philosophicus, 1918 (publicado em 1921). trad. luiz henrique lopes dos santos, edusp, 2001.
Prefácio
Este livro talvez seja entendido apenas por quem já tenha alguma vez pensado por si próprio o que nele vem expresso – ou, pelo menos, algo semelhante. – Não é, pois, um manual. – Teria alcançado seu fim se desse prazer a alguém que o lesse e entendesse.
O livro trata dos problemas filosóficos e mostra – creio eu – que a formulação desses problemas repousa sobre o mau entendimento da lógica de nossa linguagem. Poder-se-ia talvez apanhar todo o sentido do livro com estas palavras: o que se pode em geral dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.
O livro pretende, pois, traçar um limite para o pensar, ou melhor – não para o pensar, mas para a expressão dos pensamentos: a fim de traçar um limite para o pensar, deveríamos poder pensar os dois lados desse limite (deveríamos, portanto, poder pensar o que não pode ser pensado).
O limite só poderá, pois, ser traçado na linguagem, e o que estiver além do limite será simplesmente um contra-senso.
O quanto meus esforços coincidem com os de outros filósofos, não quero julgar. Com efeito, o que escrevi aqui não tem, no pormenor, absolutamente nenhuma pretensão de originalidade; e também não indico fontes, porque me é indiferente que alguém mais já tenha, antes de mim, pensado o que pensei.
Desejo apenas mencionar que devo às obras grandiosas de Frege e aos trabalhos de meu amigo Bertrand Russell uma boa parte do estímulo às minhas ideias.
Se esta obra tem algum valor, ele consiste em duas coisas. Primeiramente, em que nela estão expressos pensamentos, e esse valor será maior quanto melhor expressos estiverem expressos os pensamentos. Quanto mais perto do centro a flecha atingir o alvo. – Nisso, estou ciente de ter ficado muito aquém do possível. Simplesmente porque minha capacidade é pouca para levar a tarefa a cabo. – Possam outros vir e fazer melhor.
Por outro lado, a verdade dos pensamentos aqui comunicados parece-me intocável e definitiva. Portanto, é minha opinião que, no essencial, resolvi de vez os problemas. E se não me engano quanto a isso, o valor desse trabalho consiste, em segundo lugar, em mostrar como importa pouco resolver esses problemas.
postado em 12 de dezembro de 2016, categoria excertos : ecce homo, friedrich nietzsche, georges bataille, ludwig wittgenstein, prefácios, teoria das religiões, tractatus logico-philosophicus
reza negarestani escreveu um ensaio para uma exposição de jean-luc molène, torture concrete (2014, sequence press). uma bela resenha sobre pode ser lida aqui, com as fotos que faltam terrivelmente no livreto, ao final. (traduzo trechos interessantes sobre o papel da abstração na arte)
A abstração é da ordem da crueldade formal do pensamento. Em sua forma mais trivial e inocente ela envolve pura mutilação: amputar, da matéria sensível, a forma. Em suas instâncias mais complexas – isto é, mais autênticas -, é a organização concomitante da matéria pela força do pensamento, e a reorientação do pensamento por forças materiais. É a mútua penetração e desestabilização do pensamento e da matéria de acordo com os seus respectivos mecanismos de regulação e controle. {5}
O que sustenta e impulsiona o sistema de abstração é a ambição do pensamento de liberar a si da tirania do aqui e agora, a qual é representada como o apego do pensamento a um substrato material particular, uma intuição específica ou um limite colocado pela imaginação. {6}
(…) a tarefa da arte é redescoberta não em sua ostensiva autonomia, mas em seu poder singular de rearranjo e desestabilização das relações de configuração entre os parâmetros do pensamento, os parâmetros da imaginação e as restrições materiais que estruturam e parametrizam o edifício cognitivo. {7}
postado em 18 de outubro de 2016, categoria excertos : abstração, arte, jean-luc molène, reza negarestani, torture concrete
no célebre artigo de 1939, vanguarda e kitsch, clement greenberg cita um quadro de repin que, para sua consternação, anos depois, soube nunca haver pintado sequer uma cena de batalha. provincianismo em relação à rússia a parte, é mais o poder da retórica e do argumento que estão em questão na coleção particular, de georges perec, do que o falseamento ou não da autoria.
Mas, sendo as coisas como são na Rússia – e em todos os outros lugares -, o camponês logo descobre que, precisando trabalhar duramente o dia inteiro para sua sobrevivência e vivendo nas circunstâncias rudes e desconfortáveis em que vive, não dispõe de tempo livre, energia e conforto suficientes para preparar-se para a apreciação de um Picasso. Isso exige, afinal, uma considerável quantidade de “condicionamento”. A alta cultura é uma das criações humanas mais artificiais, e o camponês não encontra dentro de si nenhuma urgência “natural” que o conduza na direção de Picasso apesar das dificuldades. No fim, quando sentir vontade de olhar pinturas o camponês voltará ao kitsch, pois pode apreciá-lo sem fazer esforço.
{trad. otacílio nunes; em: arte e cultra – ensaios críticos, clement greenberg, cosac naify 2013}
postado em 1 de setembro de 2016, categoria comentários, excertos : a coleção particular, clement greenberg, georges perec, ilya repin, kitsch, pablo picaso
no livro de divulgação filosófica-científica “the ego tunnel: the science of the mind and the myth of the self” (basic books, 2009, p. 37-8) thomas metzinger escreve (tradução minha):
É quase impossível experienciar como uma gestalt temporal unificada um motivo musical, um trecho de poesia rítmica, ou um pensamento complexo que dure mais do que três segundos. Quando eu estudava filosofia em Frankfurt, professores tipicamente não improvisavam durante as palestras; ao invés disso, eles liam de um manuscrito por 90 minutos, disparando rodadas de sentenças excessivamente longas e aninhadas, uma após a outra, na direção de seus estudantes. Eu suspeito que essas palestras de modo algum visavam efetuar uma comunicação bem sucedida (embora elas fossem frequentemente sobre isso), mas sim que eram um tipo de machismo intelectual. (“eu vou demonstrar a inferioridade da sua inteligência jorrando em você frases fantasticamente complexas e aparentemente intermináveis. Elas vão fazer seu buffer de curto-prazo colapsar, por você não poder mais integrá-las em um único gestalt temporal. Você não entenderá nada, e você terá de admitir que seu túnel é menor que o meu!”)
Eu suponho que muitos dos meus leitores tenham encontrado esse tipo de comportamento. É uma estratégia psicológica que herdamos dos nossos ancestrais primatas, uma forma levemente mais sutil de comportamento exibicionista que se incorporou na academia. O que permite esse tipo novo de machismo é a capacidade limitada da janela movente do Agora.
obs: quando metzinger fala de tunel, está se referindo ao modelo que ele tem da consciência. quando fala de “moving window of Now”, fala da capacidade de integração gestaltica da consciência, segundo seu modelo e experimentos da neurociência e psicologia.
postado em 10 de junho de 2016, categoria excertos : academia, machismo, palestra, the ego tunnel, thomas metzinger
excertos retirados de “deleuze, os movimentos aberrantes”, de david lapoujade (trad. laymert garcia dos santos. n-1 edições, 2015). toda uma cyclonopedia e uma criatividade leprosa, também desse entendimento derivam. preparando a xerodrome.
[294] Desterritorializar não quer dizer deixar a terra ocupada pelos homens, mas, ao contrário, arrancar dos homens a terra, das percepções e das afecções humanas como tantas territorialidades, e devolvê-la ao seu movimento e à sua imobilidade próprios – abri-la ao cosmos. Num outro nível, não é esse o próprio sentido da máquina de guerra nômade: destruir os Estados, arrancar a terra dos Estados que querem englobá-la para a devolver a si mesma? Tal movimento de desterritorialização despovoa a [295] terra, esvazia-a dos homens que a ocupam e a estriam. Mas ao mesmo tempo que a terra se esvazia, ela se repovoa de outro modo que não com homens, com tudo o que há de não humano no homem e fora do homem, as inumeráveis populações minoritárias de direito, as massas moleculares que suscitam os devires da desterritorialização absoluta. Não é que se leva sua terra consigo, longe do mundo dos homens. Pelo contrário, só chegamos ao deserto – entre os homens – se nos desfizermos de nossa própria humanidade, se nos arrancarmos de nós mesmos seguindo os vetores de desterritorialização da nova terra. Esse é o próprio sentido do nomadismo imóvel invocado por Deleuze e Guattari, o salto demoníaco, quando a visão se faz, enfim, transvisão.[a dissipação ou o apagamento do objeto em benefício de “cristais”, de entidades cujos aspectos subjetivos e objetivos se tornam indiscerníveis.]
[298] A primeira operação consiste, portanto, em desertificar o mundo para atingir o plano de imanência, em remontar dos corpos às Ideias, da estética à dialética. É preciso atingir a equivalência que atravessa toda a obra de Deleuze: deserto = corpo sem orgãos = plano de imanência = caosmos = Ideia = matéria = luz em si. Mas essa imagem é tudo menos fixa, ela é como que agitada de dentro por diferenças de potencial, já pronta a se dissipar. Nada ocorre ainda, mas pressente-se que algo vai acontecer. É o tempo do deserto, um tempo puro [299] que não passa, como “um acontecimento que seria espera de acontecimento”. O deserto se confunde com um campo de potencialidades; é um céu tempestuoso carregado de energia, uma espécie de “tempestade abstrata” sacudida pelos ventos. Vem, inevitavelmente, o relâmpago do “fiat“, o acontecimento, o encontro, o momento em que tudo enfim explode, conforme as diferenças de potencial. Como sempre em Deleuze: cada coisa chega do fora. Heterogênese. E eis que a imagem se transforma inteiramente, sai de seu quadro, passa em outra coisa, embora permaneça nela mesma.
[304] Vê-se o que significa de direito o deserto. Ele procede de uma rigorosa redução na qual o aspecto crítico consiste em esvaziar a terra dos homens, a despovoá-la, a “curetar” o inconsciente de seu triângulo familiar humano, a limpar a teia de todos os clichês que a atravancam, a esvaziar a matéria dos corpos organizados, a esvaziar a linguagem das palavras articuladas para “levar lentamente, progressivamente, a língua para o deserto”. Tal trabalho é incessante, de tanto que somos invadidos pelos clichês, de tanto que nós mesmos secretamos transcendências que nos corrigem, como pilares e torres que estriam o horizonte. Como no artigo de juventude, “Causas e razões das ilhas desertas”, é preciso tudo destruir para recomeçar de outro modo, sem fundação; é preciso tudo recomeçar no deserto, a partir do deserto, tudo repovoar. Desta vez, essa é a tarefa positiva, a máquina de guerra eterna.
postado em 30 de abril de 2016, categoria excertos : corpo sem órgãos, david lapoujade, deserto, desterritorialização, gilles deleuze, máquina de guerra, plano de imanência, xerodrome
Paredão: a fisicalidade do som sentida, em sua complexidade, gerando uma resposta cognitiva de que trata-se de uma coisa só, que seria descrita como absolutamente estática, mas que é percebida como uma série de pequenas variações, afundamentos, afogamentos, deslocamentos de sensações. Coexistência do molar e do molecular. Se não há ninguém como Vomir pelas redondezas, a propor a experiência do solipsismo sonoro, ainda assim pensaremos na gênese (coloque um saco de lixo na cabeça e o mundo será o resultado da sua mente criando o mundo – não o pensamento, mas a percepção). No mármore já existem todas as figuras. Into the Full (Caron): seguindo Wyschnegradsky, no começo era o todo. O todo foi filtrado, fatiado, perfurado. Se o filtraram, aproximando-o de um som médio de fita k7, com ruídos de eletricidade rondando, e uma certa ansiedade existencial (“eu gostaria de poder mudar”), então ouviremos On the Floor, do álbum Heavy Metal Maniac, de Alfa Lima International.
{trecho do meu texto, no prelo, Música-Ruído e Forma: Começo de Conversa, encomendado pela revista linda, para a segunda edição impressa da mesma}
postado em 10 de setembro de 2015, categoria excertos : alfa lima international, into the full, ivan wyschnegradsky, jean-pierre caron, linda, molar, molecular, paredão, ruído, vomir, wall noise
duas citações muito instrutivas de uma entrevista com matthew watkins, autor da trilogia secrets of creation (prime evolution, collapse i, urbanomic 2006).
[160] We’re taught to construct the number line starting with one and then using the Peano axioms, you know, there’s an axiom that basically says, whatever number you arrive at you can always add another one to it. And I thought, hold on, where does this come from, this idea that you can always add another one, and I started to question that as something that might not be as obvious as it first seems. There’s some hidden assumption ther about order, time or something, I felt.
And I thought, well, there’s an alternate approach we could adopt here, we could start with an infinite alphabet of meaningless symbols, an infinite alphabet of meaningless yet distinct symbols, and then create the dictionary of all possible words of finite lenght out of that alphabet. [161] This alphabet of symbols would correspond to the prime numbers. By combinig the symbols in all finite possible combinations, you generate the set of words in your infinitely-long dictionary – this corresponds to the fact that if you combine the primes in all finite multiplicative combinations, you get the set of positive integers. Except now there’s no sense of order: Because we’re not starting with the positive integers, we don’t need to think one prime number as being ‘greater than’ another. The primes are not embedded in the positive integers yet, they’re just these free-floating abstract symbols.
***
[183] This last idea, that number is a bridge between psyche and matter, comes quite close to something Jung was exploring in his later career. He left a lot of incomplete work when he died, and I believe he left von Franz to look at number archetypes. He’d looked at individual integers, the first few integers and their various associations. But later, more importantly, he’d come up with the idea that, not individual numbers with their associations, but the set of positive integers as a single entity is in itself an archetype, the archetype of order.
postado em 5 de julho de 2015, categoria excertos : arquétipos, carl gustav jung, inteiros, matthew watkins, número, ordem, primos
esqueça blade runner, androides sonham com ovelhas eletrônicas.
1. (pg. 16-8)
– Minha programação de hoje aponta uma depressão autoacusatória de seis horas – disse Iran.
– Quê? Pra que você vai escolher isso? – Aquilo desafiava todo o propósito do sintetizador de ânimo. – Nem sabia que você podia escolher algo assim – disse, sorumbático.
-Uma tarde, eu estava sentada aqui e naturalmente liguei no Buster Gente Fina e Seus Amigos Gente Boa, e ele estava falando sobre uma notícia importante que estava prestes a divulgar, só que aí veio uma propaganda horrível, que eu odeio; você sabe qual é, aquela do Protetor Genital de Chumbo Mountibank. Daí, por um minuto eu desliguei o som. Então ouvi o prédio, este prédio; aquele som de… – e ela fez um gesto vago.
-Apartamentos vazios – disse Rick. Às vezes ele os ouvia à noite, quando deveria estar dormindo. Nessa época, um prédio de condaptos ocupado só pela metade podia ganhar uma alta classificação no sistema de densidade demográfica; lá onde, antes da guerra, ficavam os condomínios residenciais, era possível encontrar prédios totalmente vazios… pelo menos, era o que ele tinha ouvido falar. Ele havia se mantido alheio à informação; como a maioria das pessoas, não se interessou em ir lá conferir por conta própria.
-Nessa hora – Iran disse -, quando tirei o som da TV, eu estava no estado de espírito 382; tinha acabado de escolher. Assim, embora ouvisse o vazio intelectualmente, não conseguia senti-lo. Minha primeira reação foi de gratidão por nós termos podido comprar um sintetizador Penfield. Só que aí senti como isso era doentio, perceber a ausência de vida, não só no prédio, mas em tudo, e não reagir a nada, percebe? Não, acho que você não entende. É que isso passou a ser considerado uma indicação de doença mental; chamam-na de “ausência de afeto adequado”. Então deixei o som desligado e fiquei testando o sintetizador de ânimo até que finalmente descobri um ajuste para desilusão. – Seu rosto grave e petulante se mostrou satisfeito, como se ela tivesse descoberto algo importante. – Por isso eu programo esse sentimento duas vezes por mês; acho que é um tempo razoável para me sentir desiludida em relação a tudo, em relação a ter ficado na Terra depois que todo mundo, a ralé, emigrou. Concorda?
-Mas um estado de espírito desses – disse Rick – pode fazer com que você fique nele, em vez de selecionar outro. Uma desilusão como essa, a respeito da realidade total, se autoperpetua.
-Programo um reajuste automático para três horas depois – sua mulher disse, insinuante. – Um 481. Percepção de múltiplas possibilidades abertas pra mim no futuro; uma nova esperança que…
-Conheço bem o 481 – ele interrompeu. Tinha escolhido essa combinação várias vezes; confiava bastante nela. – Escuta – disse, se sentando em sua cama e puxando as mãos dela para que ficasse ao seu lado: – Mesmo com uma interrupção automática, é perigoso mergulhar numa depressão, de qualquer tipo. Esquece o que você programou e eu vou esquecer o que eu programei; vamos os dois digitar um 104 e ter essa experiência juntos, e aí você continua nesse estado de espírito enquanto eu troco o meu por minha atitude profissional de costume. Assim eu vou querer dar um pulo no terraço, checar a ovelha e depois ir pro escritório; nesse meio-tempo, vou saber que você não ficou aqui mofando com a TV desligada. – Ele soltou os dedos finos e longos dela, passeou pelo espaçoso apartamento até a sala de estar, que ainda exalava um cheiro suave dos cigarros da noite anterior. Então ligou a TV. Ouviu a voz de Iran vir lá de sua cama.
– Não suporto TV antes do café da manhã.
– Escolhe o 888 – disse Rick enquanto a válvula da TV esquentava. – Vontade de assistir TV, não importa o que esteja passando.
– Não sinto vontade de escolher nada agora – disse Iran.
– Então escolhe o 3 – ele disse.
– Não vou escolher algo que estimule meu córtex cerebral a ter vontade de escolher! Se eu não quero escolher, não vou escolher nada, porque daí eu vou querer escolher, e querer escolher alguma coisa agora é o impulso mais estranho que eu consigo imaginar; só quero ficar aqui sentada na cama e olhar pro chão.
2. (pg. 102)
Este ensaio vai terminar, a encenação vai terminar, os cantores vão morrer, a última partitura da música será enfim destruída, de um jeito ou de outro. Finalmente, o nome “Mozart” desaparecerá e a Poeira terá vencido.
3. (pg. 172-3)
Inclinando-se, com delicadeza, ele tirou os dedos da mulher dos manetes duplos. Então, ele mesmo assumiu o lugar dela. Pela primeira vez em semanas. Um impulso: não havia planejado isso; de repente tinha acontecido.
Uma paisagem de ervas daninhas o confrontou, uma desolação. O ar cheirava a flores acres; tudo era deserto, e não havia chuva.
Um homem parou diante dele, uma triste luz em seus olhos cansados, banhados de dor.
– Mercer – disse Rick.
– Sou seu amigo – o velho disse. – Mas você precisa continuar como se eu não existisse. Consegue entender isso? – Estendeu as mãos vazias.
– Não – respondeu Rick. – Não entendo isso. Preciso de ajuda.
– Como posso salvá-lo – disse o homem -, se não posso salvar a mim mesmo? – Sorriu. – Você não vê? Não há salvação.
– Então, para que serve isso? – perguntou Rick. – Pra que você serve?
– Para mostrar que você não está sozinho – disse Wilbur Mercer. – Estou aqui com você e sempre estarei. Vá e faça sua tarefa, mesmo que você saiba que é errado.
– Por quê? – perguntou Rick. – Por que eu deveria fazer isso? Vou largar meu emprego e emigrar.
– Você será requisitado a fazer coisas erradas não importa para onde vá – disse o velho. – É a condição básica da vida, ser obrigado a violar a própria identidade. Em algum momento, toda criatura vivente deve fazer isso. É a sombra derradeira, o defeito da criação; é a maldição em curso, a maldição que alimenta toda vida. Em todo lugar do universo.
– É tudo o que pode me dizer? – disse Rick.
Uma pedra zuniu na direção dele; ele se abaixou, mas a pedra o atingiu na orelha. Imediatamente soltou os manetes e se viou outra vez em sua própria sala de estar, ao lado da esposa e da caixa de empatia. A cabeça lhe doía pesadamente por causa da pancada; levando a mão até o local, reparou no sangue fresco a se acumular, escorrendo em grandes e brilhantes gotas pela lateral de seu rosto.
{androides sonham com ovelhas elétricas? philip k. dick. trad. ronaldo bressane. ed. aleph, 2014}
postado em 10 de junho de 2015, categoria excertos : androides sonham com ovelhas elétricas?, ânimo, blade runner, ficção científica, mercer, nihilismo, philip k. dick, poeira, wolfgang amadeus mozart