para chegar ao “tudo pode”, precisamos passar pelo “é assim que se faz”. é porque sem isso, as infinitas possibilidades se convertem em um mau infinito: qualquer coisa.
postado em 22 de novembro de 2024, categoria aforismos : base, mau infinito, qualquer coisa, tênis de mesa, tudo
muito antes da instagramização de tudo me afastar da fotografia, artistas que evidenciavam a categoria da presença em suas performances eram, entretanto, rapidamente fragilizados por fotógrafos que, armados como aranhas, esquadrinhavam os movimentos, transfigurando o acontecimento potencial em pura possibilidade imagética. em heidegguês, gestellizavam. e não via artista algum resistir a tal canibalização, frente a um fotógrafo mergulhado em sua ânsia pelo futuro, confirmando clique a clique sua destinação. que a obra, registrada, possa perdurar. que a obra, divulgada, possa se difundir. a experiência, feita subordinar-se ao pretérito e ao porvir, encontra finalmente na presença mais uma maquiagem, um adereço.
postado em 12 de maio de 2024, categoria aforismos : fotografia, gestell, martin heidegger, performance, presença
pois já consideram, no momento de suas formulações, quem as levarão a sério e quando; e aqueles que não.
postado em 6 de janeiro de 2024, categoria aforismos : destino, profecia
aristóteles, na política, defende brevemente a catarse homeopática, contra seus detratores. não é apenas pelo exemplo alopático, virtuoso, que se erradica o vício e as más inclinações da alma. a música pode purificar através da imitação do medo e do entusiasmo excessivo (livro VIII.7); a representação não apenas os torna inofensivos porque não reais. ela os neutraliza.
o remédio, ao dar pequenas doses do veneno, imuniza o corpo, a longo prazo. ou é o que dizem. sobre a arte também.
postado em 24 de agosto de 2023, categoria aforismos : aristóteles, catarse, homeopatia
o que nos fornece ainda mais uma figura para a dificuldade de, no que concerne ao tema da aproximação entre arte e vida, ter e comer o bolo: não tratamos algo sonhado como de fato ocorrido. adicionalmente, não calçamos um bolo indistinguível à distância de um tênis esportivo (mas nesse caso é duvidoso se tampouco o comeríamos. a graça parece estar em mostrar como ele pode ser indistinguível ao tênis, mesmo sendo um bolo – tê-lo e não comê-lo. posso pensar inclusive que a não-determinação quanto a tratar-se ou não de bolo seja justamente a graça).
às vezes a não determinação quanto a ser ou não arte é como o caso do bolo indiscernível de um tênis, na qual basta cortar o tênis para dispersar qualquer dúvida. (não há grandes vantagens em nos treinar a olhar para objetos como possíveis bolos indiscerníveis deles. bolos bons de comer não precisam desse caráter hipermimético e há até mesmo nele uma suspeita de que o bolo em questão seja medíocre ao paladar, tal como muitos cakes de um vermelho brilhante, muito vistoso).
postado em 27 de fevereiro de 2023, categoria aforismos : bolo, doutorado, indiscerníveis, obra de arte, ter e comer o bolo
lembro do antigo mau hábito de meu pai, a bradar já deu vou embora, em encontros sociais festivos. não que ele fosse um lobo das estepes, como o quarentão niilista do livro de herman hesse (steppenwolf). é que há algo dessa natureza que surge como possível efeito adverso de uma orientação humanista. afinal, a arte não existe contra a cultura? contra a mediocridade pequena-burguesa. quem dispensa de imediato tal noção, junto à ideia do autêntico, mergulhou cedo ou profundamente demais nas piscinas de plástico do pós-modernismo. certamente não é meu caso. se o humano é composto por uma miríade de impulsões, ainda assim, quando estas se integram na figura do lobo e sentimos já os dentes despontando, antes da tentação a me expressar, sei que é hora de ir embora.
postado em 4 de fevereiro de 2023, categoria aforismos : arte contra a cultura, filosofia, herman hesse, lobisomem, lobo das estepes, steppenwolf
é claro que existem maus-universais. a obra de fanon, por exemplo, mostra como eles podem possuir força. mas há também os crédulos que, descobrindo o mau-universal, desencantam-se, agora tomando universalmente os universais como maus. nisso, continuam idênticos, em espírito.
postado em 17 de dezembro de 2022, categoria aforismos : crédulos, frantz fanon, mau-universal
uma das coisas que o corpo da capivara mais faz e portanto, uma das potências que ele mais ativa, é justamente a de mostrar-se como quadrúpede de pelos marrons, compacto, talvez até felpudo. essa ação, quase constante, elicitada pelo olhar de outros, mas não só, impõe severas restrições para aqueles que, em vias de tornar-se capivara por motivos alimentares, ou ainda outros, se vêm impotentes quanto à exibição de pelos.
postado em 13 de julho de 2022, categoria aforismos : capivara, espinosa, perspectivismo
O quanto essa indagação [“seria possível algo ser tanto uma obra de arte quanto um objeto não-artístico?”] não se assemelha àquela em que é perguntado se possível ter e comer o bolo? Imaginemos que temos um bolo, uma fatia de bolo, para simplificar, ou melhor, uma torrada, que comeríamos junto ao café produzido tanto para que se tenha um bom café como para que seu filtro de papel, usado, seja apropriado e utilizado para a criação de uma obra de arte visual. Após você consumir a torrada, não haverá mais a torrada. Não havendo mais torrada, você não mais a possuirá. Assim, possuir (ter) e consumir (comer) são excludentes. Se a relação entre obra de arte e contraparte material for definida de modo similarmente excludente, então ser uma coisa implica não ser a outra. A ideia de objetos não-artísticos já indicava isso. Só que eu sou um sujeito um tanto insistente, com uma boa dose de teimosia, e quero explorar esses meandros até extrair daí pensamentos imprevistos. Lembro do clássico Alice Através do Espelho, em que a raínha branca declara que a regra para a geléia é que se tenha ontem e amanhã mas não hoje1. Assim como a geléia da raínha branca, a torrada pode ser retida. Reter a torrada é comê-la, mas apenas amanhã, nunca hoje. A comida mantém sua função, mas a ação que a consolida é postergada indefinidamente. A intenção prévia não se converte em intenção em ação.
Assim elaborado, esse caminho parece introduzir mais confusão do que direção. Reter um objeto como não-artístico seria tratá-lo sob a promessa do artístico mas não usá-lo como objeto cotidiano. Não apenas é estranha a diferenciação entre promessa e efetização quanto a tomar algo como artístico (o que seria isso?), como é estranho que um objeto cotidiano não seja usado quando poderia. Se alguém perguntar porque a torrada, já mofada, não foi jogada fora, seria um tanto estranho dizer “porque vou comê-la amanhã”2. Não faz muito sentido fazer e não comê-la. A não ser que a torrada seja guardada em condições muito específicas, em um ambiente controlado onde ela se mantenha constantemente comestível. Talvez o dono da torrada pense: “algum dia comerei a torrada”. Mas nesse caso a torrada é parte de uma situação inteira, sendo apenas um dos componentes de uma performance que não tem nada de habitual e cotidiana.
[1 “The rule is, jam to-morrow and jam yesterday – but never jam to-day.” (Carroll, 1994, p. 78). A frase responde a um trocadilho possível entre inglês e latim, o que não vem ao caso.]
[2 Exceto que Carolina Deptulski, quando criança, ao receber um conjunto de chocolates coloridos, resolveu guardá-los para os comer em uma ocasião especial. Como ela tinha os chocolates como muito especiais, a ocasião especial à altura acabou não chegando nunca. Quando desistiu de esperar os chocolates já estavam a muito mofados e curiosamente tinham perdido suas cores, todos aparentando um cinza nada convidativo.]
postado em 6 de dezembro de 2021, categoria aforismos : chocolate colorido, contraparte material, lewis carroll, obra de arte, ter e comer o bolo, torrada
ficamos de marcar, camila proto e eu, uma conversa sobre filosofia e arte, dado que ela também está fazendo pesquisa em filosofia da arte. andei ouvindo audio-livros dos diálogos de platão e agora, ao frequentar os podcasts do história da filosofia sem nenhum buraco (history of philosophy without any gaps), uma das coisas que estou curioso pra saber o que outros acham é o seguinte: o sócrates platônico em mais de uma ocasião fala sobre os problemas da retórica. eventualmente, ele lança o argumento: mas não sabe um médico mais de medicina do que um palestrante sagaz? não deveríamos ouvir falar, sobre nossos hábitos alimentares, o nutricionista ao invés do padeiro, a oferecer-nos deliciosas guloseimas?
às vezes tenho impressão que a filosofia cumpre um papel similar nos discursos de artistas àquele criticado por platão no que toca a retórica. no górgias, sócrates faz o grande sofista dizer que além-retórica, seria também capaz de ensinar a seus estudantes a virtude, o que o górgias histórico provavelmente nunca diria. ao invés de ferramenta, bem ou mal usada, essa deslizada torna possível uma crítica mais veemente à sofística, que então cairia em contradição. numa fala sobre música, quando a filosofia intervêm para dar valor e elevar ao bem o conteúdo, faço questão de garantir uma boa salada na hora do almoço. (mas é estranho: é como se o próprio nutricionista fizesse uma eulogia ao croissant.)
postado em 8 de agosto de 2021, categoria aforismos : croissant, filosofia, filosofia da arte, górgias, history of philosophy without any gaps, platão, retórica, salada