“teoria musical na américa”
o músico habilidoso e comunicador brilhante adam neely publicou recentemente um vídeo de nome music theory and white supremacy – teoria musical e supremacia branca. no geral, eu gostei do vídeo, mas demorei a ver porque o título de cara me incomodou. afinal, num cenário como o atual, tanto há várias teorias musicais quanto a própria ideia de uma teoria musical unificada é algo difícil de sustentar, mesmo se restringirmos a um âmbito específico como, no caso, aquele do qual trata – a música de concerto européia do século XVIII.
podemos dizer que o vídeo é sobre isso: uma única orientação, advinda de um teórico ligado a teorias supremacistas brancas, dominando a área teórica musical. o problema é, entretanto, de contextualização. de fato, o vídeo me convence de que nos estados unidos a teoria schenkeriana é de tal forma dominante que seja preciso mostrar que 1) existem várias outras opções teóricas e 2) não há porque automaticamente dar mais valor ao repertório o qual o schenkerianismo melhor aborda.
sobre o primeiro ponto: há tanto outras teorias adequadas para outros tipos de música, uma vez que se explicitou que a teoria musical (estado-unidense-schenkeriana) aborda melhor de mozart a brahms (ou algo assim); quanto outras opções de teoria analítica para o mesmo repertório. tanto que, pelo que consultei com colegas, schenker é um autor menor na europa, e eu mesmo na unicamp o estudei como uma das n abordagens possíveis e durante apenas alguns meses de uma das várias disciplinas. sobre o segundo ponto, deve ser uma situação de penetração ideológica tal que, por se manter mesmo não justificadmente, acaba por exigir uma explicitação completa do contexto no qual a teoria se coloca. e no caso, o contexto envolve declarações de supremacia dos autores germânicos e ligação de schenker com teorias eugênicas. ou seja: será preciso justificar a utilidade do da teoria e a importância do repertório para além do quadro teórico habitual e do uso não justificado do mesmo. imagine não ter uma série de bons argumentos e usar uma teoria bastante específica que eventualmente usa justificativas racistas para avançar sua importância…
mas há algo a mais: se você possui um quadro teórico baseado em algum autor ou conjunto de obras cujo contexto não é bem explicitado, sempre haverá o fantasma da ideologia a rondar: e isso levará à ideia mista de que talvez no fundo a própria técnica de análise schenkeriana teria algo de nazista. é só com a correta contextualização da mesma e definição de âmbito de aplicação que se pode fazer o trabalho de prepará-la e então considerá-la como uma ferramenta (muitas vezes inútil), dentre outras. (ademais, não deve ser difícil elencar tecnologias, achados científicos e produtos culturais, desenvolvidos sob ideologias e durante regimes espúrios, que contribuiram positivamente para a nossa vida. a explicação é a de que as criações nunca são determinadas pelas justificativas que são aplicadas a elas, e nem circunstritas às ideologias que influenciam sua origem).
agora, uma coisa é preciso dizer: assim como os estados unidenses dizem-se america, em seu estilo notoriamente auto-centrado e prepotente, precisamos explicitar que se a music theory está envolta em uma ideologia racista européia, tanto “music theory” quanto “européia” são possivelmente nomes que escondem um mesmo fundo ideológico, de uma nação umbigo do mundo. afinal, o que é a teoria musical em cada local? e pode-se dizer europeu de um desdobramento de uma ideia pouco quista de um pensador europeu, em um país da américa do norte?
não estou certo que neely realmente chama a “teoria musical” (estado-unidense), sob esse viés negativo, de “européia”. teria de rever o vídeo. o que quero apontar é a tentação de o fazer. pois parece que há um prazer tentador de imputar o problemas a outros como se não fosse possível que fôssemos parte dele (o que eu chamo de síndrome do congestionamento). nesse sentido, acho que vale resgatar a diferenciação entre origem e florescimento. lendo sobre os filósofos pré-socráticos, essa segunda é usada para falar do momento em que as ideias destes tomam corpo. se meus colegas da musicologia estão corretos e eu os entendi bem, o florescimento do schenkerianismo seria algo tipicamente estado-unidense.
postado em 14 de setembro de 2020, categoria comentários : adam neely, europeu, florescimento, ideologia, music theory, music theory and white supremacy, schenker, teoria, teoria musical