Coleção e Museu

Postei recentemente o documentário “Coleção e Museu” na minha conta do youtube. O vídeo, que tem roteiro e direção de Dalton Sala, aborda a relação entre a coleção pertencente à Fundação Nemirovsky, o expaço expositivo, localizado em um dos andares superiores da Estação Pinacoteca, e os arredores, Largo General Osório (bairro da Luz ou Sta. Ifigênia).

A trilha sonora foi feita por mim, em 2008, e apresenta uma série de peculiaridades, algumas comentadas mais abaixo. O trabalho começou bem leve e de repente, se tornou árduo, com direito a um acesso febril intenso de dois dias, espécie de “limpeza” que “promovi com o intuito de trazer-me mais para o presente”. Ao final, cansaço e retoques, e finalmente, alívio, tudo deu certo.

(Se puderem assistir ao documentário antes de lerem as minhas notas sobre a trilha, creio que a experiência será mais interessante; acredito que assim promoverei uma reavaliação de alguns aspectos da escuta e apreensão do mesmo)

O primeiro aspecto a ser comentado são os longos trechos em que não há texto falado, reforçando a importância da música para o documentário; a necessidade de estabelecer relações com as imagens, mantendo um núcleo de interesse próprio e uma noção de autonomia. As relações mais diretas decorrem em momentos de corte e sincronia, onde um elemento “comenta” uma imagem. Além disso, foram pensados contrastes a partir do som, entre texturas mais estáticas, contínuas e melodiosas e texturas mais percussivas, caracterizadas por encadeamento de elementos/objetos sonoros; também, momentos em que essas duas características pudessem ser combinadas, como no excerto abaixo.

Nesse momento, queria articular algo próximo a uma canção, com um ritmo-base e uma melodia, acrescentando intervenções gestuais com objetos diversos. Me alegra ter incluido a buzina de um moto-entregador e um extintor de incêndio. Sons de privada foram retirados a pedido de Dalton, dado o imaginário que evocam.

Começando em 3’20” com o som ouvido ao longe de músicos da ULM, as imagens colocam em evidência o trabalho do arquiteto responsável pela exposição (Pedro Mendes da Rocha), o jogo de frestas e olhares que atravessam o espaço, descobrem formas e relações geométricas (além das e conjuntamente com as próprias obras). A música toma como referência a música de Pierre Henry, dita “música concreta”. O jogo entre estabelecido na arquitetura entre “obra”, “espaço” e “entorno” (há pequenas janelas onde pode-se ver para fora da estação), foi pensada de forma livre em relação a “texturas musicais”, “referências e relações” e “fontes sonoras”.

Visitei o local da exposição duas vezes, gravando diversos sons, incluindo os dos trens que ali passavam, de torneiras, de passos, crianças, enceradores, elevador, portas, sistemas de ventilação, além de objetos de escritório (em 7’07” os sons percussivos são permutações de madeiras de escritório da fundação, com direito a uma bronca não utilizada na versão final da trilha).

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Pensar sobre música e o modernismo no Brasil eventualmente evoca a figura de Villa-Lobos. No documentário anterior sobre a mesma coleção, “A Casa e a Coleção” (2004), algumas peças para piano do compositor figuraram como trilha. Várias delas recontextualizam “temas populares brasileiros”, melodias conhecidas e cantadas por alguma parte do povo, na época, década de 20.

Para a trilha, tinha que manter algum elo com a música do documentário anterior, além de evocar algo que pudesse se relacionar com o modernismo, dado que a maior parte da coleção é formada por pinturas que se enquadram nessa estética. A solução foi utilizar a linha de baixo de uma dos arranjos para a melodia de “Se essa rua fosse minha”, feito por Heitor Villa-Lobos, bem como recontextualizar outro arranjo do compositor, de “O cravo brigou com a rosa” (toquei ao piano, inverti todas as notas separadamente, uma por uma, mudando assim o timbre; estendi temporalmente as durações, depois transpus para si-bemol).

A linha de baixo foi então seqüenciada utilizando sons de piano preparado (preparação de Valério Fiel da Costa) gravados anteriormente, para um projeto de “coveres” de canções dos Beatles, de 2006 (na presente data abandonado). Há variação na quantidade de notas e timbres utilizados, procuraram reduzir a possível monotonia, dado que o trecho inteiro (de 10’07” a 19’50” , exceção feita a entrada do quadro de Lasar Segall) é constituído por superposições e alternância entre essas duas camadas (linha de baixo e coral de “o cravo…”).

Ademais, o período no qual se desenvolveu o modernismo foi marcado pela presença do trem, suscitando imagens de locomotiva e vagões no imaginário brasileiro (acompanhados de seus sons específicos). Essa presença nessa época foi ainda mais reforçada a partir do governo Juscelino Kubischeck, consolidou-se o império automobilístico em detrimento do ferroviário, criando assim uma certa identificação modernismo – trem. Como a Estação Pinacoteca é vizinha de uma estação de trem, sons de trens sinalizaram alguns momentos do documentário, como por exemplo, quando acendem-se as luzes do espaço expositivo e pode-se finalmente apreciar as obras.

O quadro de Lasar Segal aparece em 15’14”. Como aparentava ser o representante mais expressionista da seção, procurei, a partir dos timbres já trabalhados, estabelecer uma retórica atonal, motívica (grupos de dois sons/notas), simples e que se articula por repetições variadas, duras.

Aqui cabe uma reclamação. Visitas guiadas de crianças são freqüentemente dominadas pela vontade dos adultos de exercer controle sobre as crianças. Nas gravações dos sons desse dia, só ouvia os monitores dando bronca, e foi um enorme trabalho retirar algo de valor, vozes de crianças, bonitas, “boi da cara preta” (13’06”).

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Sons de piano, estendidos temporalmente, revertidos (do início para o começo, sem ataque), soam como sinos (alusão a relógios e torres); suas pequenas variações timbrísticas relacionam-se com os movimentos da água, na qual a imagem é refletida. O caráter noturno é acentuado por sonoridades no registro grave (e não no agudo, como no começo do documentário, quando há voz e fala-se dos arredores da Estação Pinacoteca). O decrescendo final é como um adeus, com algo de solitário e melancólico; a reflexão ainda remete a ilusão, timbres não tão facilmente atribuíveis (a alguma fonte sonora física). Construída como um pequeno poema-poslúdio, esse trecho teve como inspiração as composições lentas para instrumentos de corda de György Kurtág.

Os créditos são o trecho mais experimental da trilha, usando sons captados por câmeras de vídeo, bastante ruidosos. A música se dá pela sobreposição de camadas no registro médio agudo, com intervenção de elementos repetidos literalmente. Não ao certo porque mas me vem como referência improvisos, derivados de “Poem for Tables, Chairs and Benches”, de La Monte Young e compania, cadeiras com distorção arrastadas…

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Créditos de “Coleção e Museu”

Roteiro e direção: Dalton Sala. Direção de fotografia, câmera, letreiros e projeto gráfico: Tiago Sala. Montagem: Dalton Sala, Renato Nunes e Tiago Sala. Edição de vídeo e autoração: Renato Nunes. Concepção e produção musical: Henrique Iwao. Produção executiva: Associação Cultural Cachuera! Produção: Biblos Projeto e Comunicação. Ano de lançamento: 2008.


postado em 4 de março de 2011, categoria vídeo
  1. ANA PAULA Costa disse às 11:33 em 29 de maio de 2013:

    Oi Henrique,
    abri seu convite e como já conhecia seu seu blog fui ver o vídeo ‘democracia vegetal’não entendi muita coisa, como tenho um bom ouvido e tinha um tempo livre… fui para trilha sonora “Coleção e Museu” e adorei, fiz uma grande viagem por SP e a historia do museu e o som perfeito para cada momento, muito massa bom D+. Parabéns
    Abraços
    Ana Costa

  2. henriqueiwao@gmail.com disse às 18:11 em 16 de junho de 2013:

    oi ana paula, sobre democracia vegetal), não entendeu? o porco para oferecer suas partes o faz a partir de um centro – sua voz evoca um “eu”, uma “mente”, uma unidade. um vegetal não teria esses recursos. há gente que considera isso um ponto importante, ao defender que não comamos os animais.