uai é acrônimo para unidade de atendimento integrado, o equivalente mineiro do poupa tempo, paulista. é uma instituição que acelera os trâmites estatais, sem entretanto eliminá-los. torna, portanto, os procedimentos suportáveis, servindo assim a uma dupla função – de aceleração dos processos, mas também de manutenção do aparato burocrático.
ao precisar renovar a carteira de identidade, vai-se ao uai. não sem antes agendar a ida. mas agendar a ida tem a função apenas de impedir que o local fique absolutamente lotado, porque de resto – devemos esperar na fila e pegar uma senha normal, cujo atendimento é definido por ordem de chegada.
dessa vez, ao entrar meio atônito na fila errada, tenho a estranha experiência de presenciar um senhor tendo um avc e entrando em convulsões. muita gente observa, eu não quero ser mais um destes. os seguranças não dominam como deveriam a arte dos primeiros socorros e o samu demora a chegar. um atendente se prontifica a evitar o pior, enquanto um rapaz, claramente perturbado, resmunga que amarelo desse jeito é melhor já chamar o iml.
uma hora depois, quando finalmente sou chamado no telão da sala de espera, eis que quem me atende é nosso pequeno herói. ele comenta com a colega que vai ter pesadelos essa noite. recolhe minhas digitais, minha assinatura e tira a foto de rosto, duas vezes (na segunda estou sorrindo). até sexta deve ficar pronta. se puder avalie o atendimento. aperto excelente e vou em busca de um café.
postado em 23 de outubro de 2024, categoria crônicas : avc, burocracia, uai
há algo de profundamente romântico na visão de william gibson sobre uma certa categoria de personagens. o artista como acontecimento precisa estar tão imerso no fazer a ponto de não se importar com a obra, com as conexões, com a difusão. ele é um agente da vontade, uma força da natureza: um robô lixeiro, uma menina cataléptica. ali, há uma confluência entre imagens do inconsciente, outsider art e o capital. é como se nise da oliveira tivesse de operar clandestinamente; teríamos acesso apenas a raros quadros misteriosos, aqui e ali. mas não temos o ponto de vista do artista – apenas do capitalista que quer caçar esse tesouro vivo – a intencionalidade cujo elemento humano é sublime – ao mesmo tempo nosso e estranho. sedutoramente estranho. pois haverá muitos a sonhar com a esquizofrenia, o robô lixeiro, a catalepsia.
[dos rascunhos, janeiro de 2013]
postado em 13 de setembro de 2024, categoria comentários, livros : acontecimento, gênio, william gibson
por volta de 2004 estávamos eu, lucas araújo e mário del nunzio em frente à barraca de sucos da física da universidade de campinas. haviam cerca de 20 sabores de suco possíveis. o de laranja, no entanto, poderia servir de base para os outros, sendo uma das 3 bases possíveis (as outras: água e leite). mas além dessas 59 possibilidades (incluindo laranja com leite, mas excluindo laranja com água), seria possível combinar duas a duas (190×2 + 171 possíveis), todas as outras, e também três a três (1140×2 + 969). com as diferentes bases teríamos então 59 + 551 + 3249 = 3859 possibilidades de suco. de modo que se nós três pedíssemos um suco diferente a cada dia por cerca de 3 anos e meio e compartilhássemos os copos, terminaríamos assim por realizar o feito de tomar todos, durante nosso período de graduação. contentamo-nos, entretanto, em apenas pedir as piores combinações possíveis. lembro de pedir, orgulhoso, abacate, beterraba e limão, com leite.
[dos rascunhos, junho de 2013]
postado em 7 de setembro de 2024, categoria crônicas : combinatória, graduação, sucos, unicamp
uma desavisada conversa com a amiga em meio a uma improvisação musical na kasa invisível, uma quinta de improviso. é logo repreendida por outra ouvinte. desaforada, responde: “mas isso não é tudo uma experimentação? minha conversa também pode fazer parte”. acontece que ela mesma, frente a um público silencioso e atento, não consegue realmente acreditar no que disse. queremos ser indulgentes sem que isso seja evidenciado socialmente. a desavisada sai da sala.
após a apresentação, no botequim vegano, gabi comenta o ocorrido e carol cita o episódio do irmão do jorel em que um legume fala: “tá achando que o reino do caos é bagunça?!”. é que, quando os músicos devem criar a música na hora, em meio à liberdade da experimentação, precisam estar concentrados, atentos uns aos outros. fazem música de câmara, no fundo, e interferências exteriores dificultam esse equilíbrio instável. em contraposição, em um show de rock, por exemplo, em que todos sabem o que devem fazer, o público pode cantar, beber e falar, que a música sairá incólume. de modo que
enquanto o império da ordem permite o caos, o reino do caos exige a ordem.
postado em 19 de julho de 2024, categoria crônicas, slogans : improvisação livre, irmão do jorel, kasa invisível, qi, reino do caos
o único show que vi de reginaldo rossi me marcou. não pelas canções, não pelo conteúdo da lírica, não pelo público surrado e não pela capacidade incrível de comunicador de rossi. mas porque disse que era palmeirense e em seguida começou a tocar meu coração é corintiano. qual era a mensagem? todos os times (que torcemos) são o time (que torcemos)? penso naquele amigo que te apoia no fundo mas te sacaneia no raso. a profundidade daquilo me escapa (ou a superficialidade).
[dos rascunhos, janeiro de 2014]
postado em 17 de junho de 2024, categoria música : profundidade, reginaldo rossi, torcedor
as melhores músicas que toquei , toquei como um autômato.
[dos rascunhos, fevereiro de 2014]
postado em 15 de junho de 2024, categoria comentários, música : gottfried wilhelm leibniz, interpretação musical, sentimento
em teoria, poder-se-ia fazer pão de queijo acrescentando outros elementos: cúrcuma, pimenta calabresa, fermento, cominho etc. mas talvez fosse melhor só colocar mais queijo mesmo.
quando falamos de teoria e não fazemos os pães de queijo, pode ser que sonhemos com novos sabores. ainda assim, ao final, o importante será: o queijo, o leite, o polvilho, os ovos.
toda teoria tem um momento de duvida: será que a tradição nos cega para a inovação? ainda assim, ao final do dia, o que queremos é comer uma boa iguaria.
[dos rascunhos, janeiro de 2021]
postado em 4 de junho de 2024, categoria comentários : cânone, inovação, pão de queijo, tradição
se o ensaios sobre de teodicéia tem 417 pontos, excursões, respostas à objeções e anexos, o monadologia tem apenas 90 pontos e é um fantástico resumo, direto ao ponto. exemplo de como a maturidade pode permitir simplificações de pensamento (as obras do final da vida de iannis xenakis vêm a mente). a única questão que não fica clara para mim é §55, da demonstração da necessidade de deus à priori.
seria ainda necessário produzir um texto proporcionalmente equivalente, ainda mais curto em 18 pontos, sem introdução, e outro ainda, lacônico, com 4 pontos, com um título tal como os quatro princípios da providência divina e imensa. se o ensaio sobre a graça humana tem 18 parágrafos, leibniz não nos forneceu a versão mínima.
como aforista, me arrisco aqui apenas a fornecer o último trabalho, e se um livro cabe em parágrafos que cabem em ainda menos parágrafos, estes devem caber em frases, que por sua vês podem ser resumidas em conceitos de uma ou duas palavras.
1. deus.
2. mônadas (harmonização).
3. razão suficiente.
4. não contradição.
como deus decorreria de 3, e disso segue a harmonização, o livro pode ser ainda resumido em “a razão suficiente se encontrou com a não contradição”.
[dos rascunhos, provavelmente 2015]
postado em 24 de maio de 2024, categoria comentários : filosofia, gottfried wilhelm leibniz, resumo
muitas pessoas não percebem isso de imediato, mas a grande questão com a linguagem – arrisco, a grande contribuição da linguagem, é permitir com que digamos, pensemos e escrevamos coisa que discordamos veementemente, sempre usando o pronome eu.
[dos rascunhos, provavelmente 2015; discordo veementemente.]
postado em 21 de maio de 2024, categoria comentários : confiança, eu, linguagem, normatividade
há um panelaço contra marcado para 20h30. sentindo-se inspirado, ele então marca outro, a favor, para 21h. em 20h30, fora bolsonaro, panelas, xingamentos. nada de muito efetivo ou revolucionário. mas confirma um clima. marca um limite para alguns. e se eventualmente se estender por meses, talvez gere um esgotamento mental difícil de se opor. 21h, como disse joão flor de maio, o som do corona vírus se espalhando. mas tem gente que diz que não. aqui e ali mito, aquela situação deprimente de ouvir um ridículo protesto que se auto-refuta, mas não se anula. fica esse resíduo do patético, do tacanho. e então lembro do início de sylvia & bruno do lewis carroll, na qual os cidadãos gritam: mais impostos, menos pão!
é possível pensar uma estratégia conceitualmente mais ousada: o oponente propõe que seu contra-panelaço seja no mesmo horário que aquele ao qual é contra. assim, existiriam dois panelaços às n horas, um contra e um a favor (ou contra o contrário). mas como distinguí-los? quem pensa nisso já se equivoca: o importante não é que sejam discerníveis, mas que possam ser mobilizados, uma vez que indiscerníveis.
[dos rascunhos, junho de 2021]
postado em 19 de maio de 2024, categoria comentários : extrema direita, indiscerníveis, lewis carroll, panelaço, sylvia e bruno