silvia pfeifer

Angústia sensorial. De tanto ver o mundo ser transformado em imagem, de tanto ver a vida ser transformada em show de realidade patrocinada, os habitantes do gueto capitalista já não sabem o que é e o que não é real. Não sabem se seus sentimentos são seus mesmo ou se são ficção de personalidade. Bombardeados pelo delírio das ficções comerciais e não comerciais, eles vivem envolvidos com mundos que só existem no desejo. Vivem excitados por excessos de desejos inventados. Eles são inquietos perfis cadastrados nos autobahns de serviços midiáticos. São viciados, fascinados, movidos, inspirados, pirados, apaixonados por esse circo de ilusões descartáveis, incessantemente renováveis e espetaculares, que colonizou os sistemas nervosos centrais e periféricos e que dão prazer turístico à existência. Pessoas são parques temáticos e precisam de provocações sensuais, sensoriais. Precisam de transe, hipnose visionária pra aliviar a barra. Precisam de entretenimento mesmo que rime com pensamento. Precisam de diversão mesmo cheia de perturbação. Como sempre. Coliseu e Igreja sempre. Arena e púlpito alucinando as mentes e corações. Mas, agora, tá demais no supergueto capitalista. Precisam de outros mundos pra equilibrar com esse aqui. Mas que mundos? Habitantes do supergueto capitalista. Na cabeça deles, pra cada beijo e facada existe uma coisa pesquisada e o mais vagabundo ferro de passar tem a ver com uma pesquisa militar. Pra eles o invisível microscópico, o invisível cósmico já são coisas muito vulgares, o transcendental já é algo muito banal, quando o cosmos é algo chulo, quando o funcionamento do cérebro, apelidado de mente, ganha status de videogame clínico, que emoção espiritual resta aos habitantes de um supergueto capitalista? A religiosa ortodoxa sobrenatural? A política transformadora do mundo? A comunhão amorosa familiar? A estética artística industrializada? Sem transcendência possível, o que resta é a fascinação tecnológica pela ideia de espírito, esse fóssil religioso que nos ligaria a algo superior… O que resta é a interaçnao com imagens cada vez mais realistas e penetráveis. Parangolés digitais. Tron. Hellraiser. Tela me leva. Monitor você é meu obsessor. Organotron. Imagens que provoquem sensações, apenas sensações espirituais. Afinal de contas, espiritualidade é uma coisa que dá e passa. Fascinação/interação comercial não. Só resta para eles a fissura por aplicativos que evoquem a ideia de espírito. Máquinas que, injetadas, aumentem capacidades cognitivas, aumentem a sensação de elevação acima da mediocridade geral. Como uma super dose de heroína transformada em minúsculo robô sem efeitos colaterais. Espírito. O fóssil. Só resta a interação com imagens hiper-realistas que os levem para mundos não humanos, universos paralelos. E rostos de mulheres, cuja beleza sugere emoção espiritual, robótica ou angelical, demoníaca ou transcendental, se revezam no maior telão de Copa… Tentando aplacar a angústia sensorial com o máximo de fascinação/interação tecnológica, os habitantes do gueto capitalista concentram seu olhar no rosto da manequim número um no maior dos telões. Mundos não humanos. Universos paralelos. Fascinação comercial. Sensação espiritual. Mundos que só existem no desejo. Silvia Pfeifer.

fausto fawcett: vanessa von chrysler. em básico instinto, p. 46-8.


postado em 3 de agosto de 2019, categoria citações : , , , ,

des-desaceleracionismo

Embora a imagem cuidadosamente selecionada do capitalismo seja a de um dinamismo de assunção de riscos e inovação tecnológica, essa imagem de fato obscurece as fontes reais do dinamismo na economia. Desenvolvimentos como as ferrovias, a internet, a computação, vôos supersônicos, viagem espacial, satélites, farmacêuticos, softwares de reconhecimento de voz, nanotecnologia, ecrã tátil e fontes limpas de energia foram todos nutridos e guiados por estados e não corporações. Durante a época de ouro  da pesquisa e desenvolvimento do pós-guerra, dois terços da pesquisa e desenvolvimento foi financiada publicamente. E as décadas recentes viram o investimento em tecnologias de alto-risco declinar drasticamente. Com o os cortes neoliberais de despesa estatal, não é surpreendente que mudanças tecnológicas tenham diminuído após 1970. Em outras palavras, é o investimento coletivo, e não o privado, que tem sido o principal motor do desenvolvimento tecnológico. Invenções de alto-risco e novas tecnologias são muito arriscadas para o investimento privado dos capitalistas; figuras como Steve Jobs e Elon Musk maliciosamente ocultam sua dependência parasita a desenvolvimentos estatais. Da mesma forma, projetos bilhonários de larga escala são em última instância impulsionados por objetivos não-econômicos que excedem qualquer análise de custo-benefício. Projetos dessa escala e ambição são na verdade entravados por limitações de mercado, pois uma análise sóbria da sua viabilidade em termos capitalistas os revela como profundamente indesejáveis. Adicionalmente, alguns benefícios sociais (oferecidos por uma vacina contra o Ebola, por exemplo) não são buscados devido ao seu pequeno potencial lucrativo, enquanto em algumas áreas (como energia solar e carros elétricos), capitalistas são vistos ativamente impedindo o progresso, fazendo lobbies para acabar com subsídios a  energias renováveis e implementando leis para obstruir desenvolvimentos futuros. A indústria farmacêutica inteira fornece uma ilustração devastadora dos efeitos da monopolização da propriedade intelectual, enquanto a indústria da tecnologia é cada vez mais atormentada por trollagem de patentes. O capitalismo portanto atribui erroneamente as fontes de desenvolvimento tecnológico, veste a criatividade de uma camisa-de-força de acumulação de capital, restringe a imaginação social dentro dos parâmetros de análises de custo-benefício, e ainda ataca inovações anti-lucrativas. Para desencadear o avanço tecnológico, nós precisamos nos mover além capitalismo e liberar a criatividade dos seus atuais pontos de estrangulamento.

{inventing the future: postcapitalism and a world without work (inventando o futuro: pós-capitalismo e um mundo sem trabalho, verso books, 2016), nick srnicek e alex williams (tradução minha, p. 178-9)}


postado em 1 de maio de 2017, categoria citações, tradução : , , , , , ,

o presente do grou

a muito tempo atrás, mas nem tanto, um grou estava com a perna quebrada. um velho o achou e socorreu, levando o para casa. então, ele e sua esposa o alimentaram e cuidaram de seu ferimento, até que este melhorasse. para agradecer a hospitalidade, antes de partir, o grou deixou como presente um pote com suas fezes.

(aqui, a história é outra pois) os velhos, felizes ao ver o cocô e não mais o pássaro, logo pensaram: sim, é o segredo da juventude, o cocô do grou. mas como durante toda a estadia o grou não conversara nada com eles, e sabe-se que grous mágicos falam, decerto sabia que esperávamos isso dele – um cocô mágico, para passar-nos a cara. ao diferenciar retribuição de recompensa, deu nos um cocô ruim, sem magia, que não vale de nada esfregar no rosto.

então, rapidamente decidiram levar o pote para o terraço e o secaram. em seguida, fizeram do estrume seco um perfume. envasaram-no em frascos, com os dizeres “elixir da juventude”, e puseram-se a vende-los.

como venderam muito, gastaram muito. mas não satisfeitos, logo adotaram um filho, pois sabiam que a herança ia ser farta.


postado em 29 de janeiro de 2017, categoria histórias : , , , , , ,

um ser verdadeiro

cedo ir ao açougue, mais tarde ao empório; cansado deixo o banco pra depois (maravilhas da internet). de barriga cheia, uma bela postagem ou comentário. tenho poupança e investimentos. amanhã quem sabe?


postado em 6 de setembro de 2016, categoria crônicas : , , , , ,