a domus, a metrópole, o gheto, a megalópole

o inumano é uma série de artigos reunidos de jean-françois lyotard (editorial estampa, lisboa, 1989). esse clássico do que se chamou de filsofia “pós-moderna apocalíptica” é ancorado numa união entre “a questão da técnica” de heidegger e “a teoria estética” de adorno (em si cheia de mônadas, de leibiniz), com pitadas do último freud e a teoria do sublime de kant. a tese wittgensteiniana dos “jogos de linguagem” no período pós-moderno é deixada de lado, para descrever uma destinação, cuja imagem mais forte é o progresso tecno-científico rumo à eliminação do corpo, afim de que seja possível uma sobrevivência à morte entrópica do sol. diz ele (cito extensamente), em “domus e a megalópole” (1987):

“A metafísica é realizada na física, num sentido amplo, e, hoje em dia, actua na tecno-ciência. Reclama-nos, por certo, um luto diferente daquele exigido pela filosofia do desastre e da ociosidade. O partido que é tomado não é o do indomável, mas sim o da sua negligência. De fazer física (quase leibiniziana) do inconsciente, assim o poderíamos dizer. Não é preciso escrever, infância, dor. Pensar consiste em contribuir para a melhoria da grande mónade. É isto que nos é pedido obssessivamente. É necessário pensar de forma comunicável. Fazer cultura. Não para pensar segundo o acolhimento do que vem singularmente. De preferência para prevê-lo. To success is to process. Melhorar as performances. É uma domesticação, se assim o queremos, mas sem domus. Uma física sem deus-natureza. Uma economia onde tudo é aprendido e nada recebido. E, obviamente, um analfabetismo. O respeito e o desrespeito da leitura severa e serena em relação ao texto, da escrita para com a lingua, essa enorme casa sempre inexplorada, a ida e vinda indispensável no labirinto desses quadros vazios, sempre desertos – a grande mónade não tem cura para isso. Apenas vai e constrói. Promoção. É o que exige dos humanos. Com o nome de <actuação comunicacional>, de <conversação> e de relegação da filosofia, de performatividade, é-nos pedido que pensemos de forma útil. Útil para a composição da megalópole.” (p. 198-199)

(não há domus na megalópole, se havia ainda esse espaço na metrópole, ele é engolido pela necessidade de armezenar energia, capacidade, da grande memória, preparando-se para o exílio cósmico inumano)

“Só vivemos na megalópole se a designarmos como inabitável. Se não, apenas lá temos um domicílio. No limite do tempo descontado (a segurança), esperar a catástrofe do instante, escreve Benjamin. Na transformação inevitável das obras em mercadorias culturais, manter o testemunho esmagador de que a obra é impossível, escreve Adorno. Habitar o inabitável é a condição do gheto. O gheto é a impossibilidade da domus. O pensamento não está no gheto. Cada obra à qual o pensamento pródigo se resolve esconde o muro do seu gheto e serve para neutralizar o pensamento. Pode apenas deixar a sua marca no tijolo. Fazer graffitti nos média, última prodigalidade, última homenagem à frugalidade perdida.” (p. 199)

“E os amantes não têm nada para contar um ao outro. São destinados à deixis: isto, agora, ontem, tu. Destinados à presença, vazios de representação. Mas, a domus fazia legenda e representação desses silêncios e dessas inscrições. Ao contrário, a megalópole exibe-os e torna-os comunicáveis. Chama à melancolia autismo e ao amor sexo. Do mesmo modo que os fruges são chamados produtos agro-alimentares. Os segredos devem ser postos em circuitos, as escritas em programas, as tragédias transcritas em informações. Protocolos de transparência, cenários de operacionalidade. Apesar de tudo aceito a vossa domus, é vendável, a vossa nostalgia, o vosso amor, deixe isso comigo. Pode ter alguma utilidade. Capitaliza-se o segredo depressa e bem. Mas a megalópole não sabe que o segredo não é segredo de nada, que é incluto, insensato, já na domus. Ou, de preferência, só tem uma ideia desse facto. Enquanto que o segredo, porque consiste no único timbre de uma matéria sensível, sentimental, só é acessível para a estupefacção.

Apenas queria dizer isto, ao que parece. Não que a domus é a figura de comunidade que pode ser uma alternativa para a megalópole. Acabou a domesticidade e, sem dúvida, nunca existiu, a não ser como um sonho da criança de outrora que acorda e que a destrói ao acordar. Surge com a criança cujo despertar a desloca para o horizonte futuro dos seus pensamentos e da sua escrita, numa vinda que deverá sempre ser atrasada. É assim, não como uma superfície de inscrição que estaria verdadeiramente ali, mas como um corpo astral desconhecido que exerce de longe a sua atracção sobre a escrita e o pensamento, de preferência como uma miragem que requer como uma condição necessária. – é assim que o mundo doméstico não pára de se exercer sobre a nossa passibilidade em relação à escrita, até ao desastre das casas. Hoje, o pensamento não requer, não pode requerer, a memória representada pela tradição, a phusis bucólica, o tempo que rima, a beleza justa. Ao recorrer aos seus fantasmas, ela tem a certeza de errar, quero dizer: fará fortuna no retro distribuído também pela megapolis (pode ser útil). O pensamento não pode querer a sua casa. Mas a casa assombra-o.” (p. 200-1)

“E também queria dizer o seguinte. – Bem, dizemo-nos (quem, nós?), pois bem, pelo menos, continuaremos no gheto. Tanto quanto possível. Pensar, escrever, é, no que nos diz respeito, portar testemunho do selo secreto. Que este testemunho faça obra, em alguns casos, possa, pagando o preço do engano e do pior desprezo, ser colocada nos circuitos da megalópole mediática, é inevitável, mas o que também não se pode evitar, é que a obra assim promovida seja desfeita, desconstruída, ociosa, desterritorializada, pelo trabalho de ainda pensar e pelo encontro desestabilizador de uma matéria (com a ajuda, não de deus, nem do diabo, mas da sorte). Testemunhemos pelo menos e ainda, e para ninguém, sobre o pensamento enquanto desastre, nomadismo, diferença e ociosidade. Façamos os nossos graffiti, à falta de gravar – Isto parece de uma verdadeira gravidade. No entanto, digo-me: aquele que continua a testemunhar, e a testemunhar sobre o que é condenado, é porque não está condenado e sobrevive à exterminação do sofrimento. Que não tenha sofrido o suficiente, enquanto que o sofrimento de ter de inscrever o que não pode ser inscrito sem resto, é por si mesmo o único testemunho grave. A testemunha da culpa e do sofrimento engendrada pelo diferendo do pensamento para com o que não consegue pensar, essa testemunha, o escritor, a megalópole aceita-a de bom grado, o seu depoimento poderá servir. É como se o sofrimento e o indomável, atestados, já tivessem sido destruídos. Quero dizer: ao testemunhar, também se extermina. A testemunha é um traidor.” (p. 202)

(acho isso bastante triste. vontade de chorar, sempre nervosa e contida, em mim.)


postado em 13 de setembro de 2012, categoria Uncategorized : , , , , ,