Quizéé Anssim, perguntas a Paulo “Juju” Loureiro e Camilo “Plâncton” Caropreso

Perguntas realizadas através de mensagem eletrônica, por <veetbhram@gmail.com>, em 19 de maio de 2012. Em 01 de junho, Camilo Caropreso mandou uma gravação, em que respondia as perguntas. No dia seguinte, me encaminhou respostas redigidas por Paulo Loureiro.

Perguntas e organização final por Henrique Iwao. Transcrição e revisão por Sofia Betancor.

Oi Camilo. Primeiro eu gostaria de dizer que ouvi durante bastante tempo seu programa de rádio. Você pode falar sobre coisas básicas, como: qual o nome do programa, por quanto tempo durou ou dura? Se houve períodos de pausa etc? Quando era, de que horas até que horas, quem eram os programadores? Ele sempre foi na rádio Muda (no antigo 105.7)?

O programa sempre foi uma parceria entre eu e meu colega, Paulo Juju, vulgo Paulo Sokobauno. O Juju começou o programa bem antes de ele me chamar para fazer o programa junto com ele. Acho que em 1997, ou 1998, que ele começou a fazer o QUIZÉÉ ANSSIM NUM QUIZÉÉ ANSSIM TUMÉM. Ele até tem uma história, é um conto louco, longo, sobre como surgiu esse nome. Mas o programa começou mais ou menos em 1997 ou 1998 e eu me juntei a ele em 1999.

Naquela época eu já estava na Rádio Muda há pouco mais de um ano e eu fazia um programa de música pesada, estava num momento meio metaleiro. Um belo dia ouvi o programa dele, depois ele ouviu o meu, tivemos alguns gostos musicais que se cruzaram; ele gostava muito de tocar aquela banda alemã, o Rammstein, e ele me chamou para fazer o programa com ele. Já tinha essa proposta bem sokobáunica, o Juju fazia artes cênicas e pegava muita coisa que ele experimentava durante as aulas, e começou a aplicar no rádio.

No começo eu não tinha intimidade com esse lado mais performático, eu gostava mais era de ouvir o som, não me dava muito bem com o microfone. Enfim a gente começou a fazer o programa junto e acabou se dando bem. Sou de Barão Geraldo, nasci e cresci em Barão, o período que eu fiz o programa foi entre 1999 até 2008. Nesse tempo teve alguns hiatos, que eu passei dois, três anos fora, morando aqui no norte, no Amazonas, trabalhando, mas para a gente o programa continua. Tanto é que no final do ano passado, em dezembro, eu fui na Rádio Muda, fiz o programa e tudo o mais.

Os programadores eram eu, Camilo Caropreso, e o Juju, Paulo Loureiro Júnior, o Sokobauno. Ele sempre foi na Rádio Muda, mas a gente já fez outros tipos de rádio, rádio-performance, radioarte, em outros contextos que tinham muito a ver, que toda a essência veio do programa da Rádio Muda; a gente tocou na Virada Cultural, já tocou no Sesc, até mais ou menos 2004, 2005, que eu trabalhava como Dj, tinha toda uma influência do programa.

Ele sempre foi na segunda-feira, na faixa das 20h às 22h ou das 22h às 00h, teve um período que foi das 00h em diante.

Você pode falar um pouco sobre o formato do programa?

A gente chama de rádio-performance, é um programa diferente dos formatos de programas de rádio usuais, que você toca uma música, depois outra, e fala o nome da música, o nome do disco que tocou, nessa sequência. É como se fosse um jazz radiofônico, a gente sempre deixou em aberto o que iria acontecer nunca sabia o que ia contecer, na verdade. O formato básico do programa, a técnica básica, é o que a gente chama de esquizofonia, que é basicamente você tocar várias músicas ao mesmo tempo. Mas não tocar várias músicas ao mesmo tempo a troco de nada. Como uma orquestra tem vários instrumentos, a ideia era que cada música fosse um instrumento diferente, que cada música complementasse a outra e isso virasse uma música só.

A gente refletia, meditava bastante e evitava certos tipos de combinações. Por exemplo, se colocasse dois sons de punk rock, duas baterias tocando em tempos diferentes ao mesmo tempo, fica horrível. Então a gente procurava pegar as músicas, colocar três, quatro, cinco, no máximo seis músicas. Fazia com que cada música preenchesse o vazio que a outra deixasse. Por exemplo, você pegar um concerto de violão do Villa-Lobos junto com música eletroacústica e no meio você põe alguns cânticos indígenas; ou até mesmo som ambiente, que eu gosto muito de gravar pois trabalho com meio-ambiente, sempre viajo muito aqui pela amazônia; gosto muito de gravar o som na beira do rio, do riacho, de noite, o som da mata, enfim.

Como surgiu a ideia de fazer um programa de uma música só? Ele sempre teve esse formato, várias músicas misturadas, uma grande mistura musical, uma grande colagem, com intervenções poéticas/vocais/guturais? Como chegou neste molde?

A coisa foi surgindo no andar da carruagem. A gente foi criando essa proposta, a Rádio Muda permitia você ter essa liberdade total para construir um tipo de programa assim. Sei que a gente começou a fazer esquizofonia, começou a gostar, gostar cada vez mais e mais e de repente a gente não sabia fazer outra coisa além disso, dentro da rádio, pensando no lado musical. Mas sempre nesse sentido, em que a gente fazia um programa de uma música só, com várias músicas, e cada música ia complementando o espaço que uma outra música deixava. A gente evitava, como te falei, deixar coisas muito pesadas junto. Eu, o Juju não, ele gostava de coisas mais carregadas.

Mas a gente fazia isso, nesse sentido de as músicas se complementarem e acabarem virando um som só. Tanto é que tem vários casos de colegas, de pessoas que ouviam e perguntavam o que estava tocando, de onde tirou a música, de onde surgiu e eu perguntava “que parte você ouviu? Foi assim, foi assado?” e eu falava que não era uma música só. Basicamente foi isso.

O Juju já estava nesse trem, nessa viagem, e eu acabei entrando, a gente acabou construindo isso junto. Eu arrisco a dizer que se o programa teve algum formato diferente foi bem lá no começo, quando o Juju fazia o programa sozinho. Desde que eu estou junto o programa sempre teve esse formato, de rádio-performance, de radioarte, de esquizofonia, uma grande mistura musical com essas intervenções poéticas vocais e guturais.

Posso dizer no início que o impulso veio em grande parte do Juju. Naquela época ele fazia artes cênicas, ele é ator, e tinha uma pesquisa; estudava muito texto de teatro, alguns professores dele que o ajudaram e dirigiam tiveram uma influência. Ele gostava muito de algumas coisas bem góticas, bem obscuras do teatro, do Heiner Müller por exemplo que é um teatro bem pesado. Então essa influência poética, vocal e gutural que você fala veio no começo muito da parte dele, como te falei, eu entrei nesse bonde. E acabei gostando da história.

Essas intervenções também, muita coisa eram textos que ele trazia. Mas depois com o tempo a gente começou a produzir e escrever as nossas coisas, e performar em cima disso. Até ouvindo uma música em casa, me dava uma inspiração, eu pegava um caderno, começava a escrever e começava a pensar que combinava com tal música, e a gente ia testando. Tem várias performances, com textos que eu escrevi e o Juju também, que a gente testava várias vezes, apresentava várias vezes, repetidamente, porque a gente gostava de fazer.

Quando você ou o Paulo faziam as colagens, havia um plano? Há coisas que vocês gostavam mais, coisas que priorizavam? Havia modos de se fazer ou preocupações específicas? Modos de fazer que eram mais interessantes? Como era operar o equipamento nessa mistura, você se guiava por quais fatores?

Não tinha um plano pré-concebido. O que havia era que boa parte das vezes tinha algumas coisas que a gente separava, textos e músicas, que a gente gostava de usar como ponto de partida. Além dos textos que eu fazia, das coisas que o Juju escrevia ou pesquisava, havia também algumas músicas que a gente gostava de ouvir, de performar, a gente usava isso como ponto de partida. Iniciado esse processo de performance acabava vindo muita coisa do improviso. Tanto do que a gente falava até do que a gente tocava. Uma hora a gente experimentava uma combinaçã de três ou quatro músicas, outra hora a gente mudava isso.

Se tinha prioridade nesse processo? Na verdade não tinha prioridade nenhuma, o próprio processo de colagem sonora, o próprio processo esquizofônico é que era prioridade. Preocupação específica, pela parte do Juju, não havia; eu tinha um pouco de preocupação, que eu não gostava muito de determinadas misturas, que para o meu ouvido ficava um pouco carregado. Como por exemplo você pegar dois sons de rock’n’roll, hardcore, e colocar ao mesmo, eu acho insuportável dependendo da ocasião, do seu estado de espírito. Então eu tinha esse preocupação em não fazer a coisa muito inaudível; já o Juju não, ele gostava de chutar o balde.

Você pergunta que modos de fazer eram mais interessantes. Sempre foi interessante. O que a gente gostava era de usar efeito na voz, usar um flanger, um wah wah, um delay. Essas coisas a gente gostava muito de fazer e, quando tínhamos essa oportunidade, pegávamos pedaleira emprestada de amigos, eu mesmo comprei um pedalzinho de flanger, tinha um mixer na Rádio Muda foi o primeiro mixer recente que compraram, em 2000, que tinha eco. Isso a gente achava muito legal de fazer ao vivo, fazer o programa com efeito na voz, acrescentava muita coisa além de toda a música que já estava rolando.

Sobre como operar o equipamento, era um jazz. O programa era um grande improviso e com o equipamento era mais ou menos assim. Tinha hora em que eu estava lá mixando as músicas, o Juju abria o microfone e começava a performar, e eu ia junto. Tinha horas que trocava, eu pegava o microfone, ele começava a performar com o mixer, com o som, e a gente nunca sabia onde ia chegar.

Geralmente os equipamentos que a gente usava na Rádio Muda eram dois aparelhos de cd, duas pick-ups, techniques, para a gente poder fazer também scratch e tudo mais, e dois microfones, o ideal que tivesse efeito em cada um. Tudo isso era feito ao vivo, a gente nunca foi pelo lado de preparar alguma coisa ou de editar no computador, apesar de ter milhares de possibilidades. A gente até fez um curso no IA sobre isso, mas preferimos fazer sempre tudo ao vivo, com esse equipamento. De um tempo para cá na Rádio Muda instalaram um computador; ou eu trago meu laptop e faço seleções nele. Mas é basicamente esse o equipamento.

O que te atraiu para fazer rádio? Há alguma relação entre o meio e o fato de você ter enveredado numa prática de colagens musicais no seu programa?

Nada disso seria possível se não fosse a Rádio Muda. A Rádio Muda é o grande motivo que nos permitiu fazer esse tipo de programa, ter esse tipo de pesquisa, chegar onde a gente chegou. Porque é uma rádio livre, não é uma rádio comercial. Dentro da rádio, enquanto programador, você tem uma liberdade muito grande, você não tem de estar preso nesse formato de rádio comercial, principalmente em programa musical, de uma música depois da outra, não tem jabá. Isso acabou nos permitindo a construir o programa do jeito que ele foi, por causa da liberdade.

Sobre relação com o meio: como te falei, a relação é total. Se nós não estivéssemos numa rádio livre, se a rádio não tivesse nos possibilitado esse tipo de experimentação, a gente não chegaria onde chegou. Era muito legal saber que havia uma troca, tinha um lado de lá, enquanto a gente estava emitindo uma mensagem, uma energia do estúdio, tinha os receptores. E havia a troca, tinha amigos, colegas, às vezes até do nada surgia um “ah, você que fica gritando ‘sokobauno’”, “você que é o sokobauno”, “ouvi, achei bacana, gostei”; ou o contrário, tinha gente que achava insuportável. Tive algumas namoradas por exemplo que não conseguiam digerir. Eu gostava de ouvir em casa, desde as gravações do programa até coisas que eu tocava nele, que eram muito pesadas para as namoradas e amigos, colegas de república.

Uma coisa legal é que a gente gravava todos os programas, a gente tem todos gravados, a maioria em fita cassete.

Existe algo específico nessa prática de colagem musical que você achava especialmente pertinente? Alguma relação com o movimento de rádios livres, de desestabilização do que é familiar?

Como é uma rádio livre, e não te impõe limitações, foi possível todo esse movimento de experimentação. Pegamos o formato de rádio e viamos de ponta-cabeça, demos uma surtada em cima disso.

Acho que a relação do movimento de rádios livres é direta com isso, com essa questão da liberdade de fazer e experimentar. Eu fico muito triste que no movimento de rádios livres haja toda uma questão, uma demanda com a liberdade de expressão, toda uma posição de enfrentamento com essa política escrota da Anatel, do ministério das comunicações, de acabar com as rádios livres, com as rádios comunitárias e tudo mais; que haja todo esse questionamento mas, dentro do movimento de rádios livres, não tem muito essa reflexão em cima do meio, do rádio, do que fazer com o rádio, de onde você está e onde quer chegar.

Há toda uma mobilização diante da liberdade de expressão em favor das rádios comunitárias e livres, mas acho que o movimento de rádio livre não tem pensado muito com relação ao que fazer dentro do meio. Não conheço quem levante essa bandeira de autorreflexão, de buscar novas formas de comuicação através do rádio, de experimentação, de radioarte. Dentro da Rádio Muda nessa época do Quizéé Anssim, a gente pode citar outros programas que eram experimentais; como era o programa do meu colega, o Guilherme, vulgo Cérebro Aquático; tinha o programa do Batata Cantante, Os Antropoides, que era de um rapaz que durante muito tempo tocou para frente muita coisa da Rádio Muda, o Mirco.

Depois de um tempo a gente até parou de usar essa expressão, “experimentalismo”, e cunhou essa expressão de radioarte; que é esse lado artístico da expressão radiofônica. Como disse, acho que no movimento de rádios livres não há muito essa preocupação sobre arte e rádio.

É possível traçar uma genealogia para Sokobauno? De onde surgiu este grito? Aliás – pode-se considerar um grito de guerra ou grito de liberdade? Não conheci o Paulo, mas ele ainda costuma usar o nome Paulo Sokobauno, assim como você usava o nome Plancton?

O papo é longo. De onde vem o Sokobauno… O Juju fazia cênicas e nas pesquisas ele trombou com vários textos, sonatas, do movimento Dadá, do começo do século XX, década de 1910, 1920. Sokobauno é uma sonata dadaísta, tecnicamente falando. Vem de uma sonata dadaísta de um poeta suíço chamado Hugo Ball. É uma sonata dadá, cada pessoa que lê vai ter um entendimento diferente, por ser dadaísta, já subtende-se que não há uma preocupação em que a pessoa que receba a mensagem tire uma determinada conclusão, o receptor é que deve tirar suas próprias conclusões, independente da vontade inicial do emissor.

Então esse termo veio dessa sonata dadaísta, que nem tem esse nome. A sonata começa assim: “Sokobauno, sokobauno, sokobauno / schikander, schikander, schikander / as lixeiras estão engordando”. É a primeira estrofe da sonata.

O grito surgiu não sei de onde. A primeira vez que o Juju gritou ‘sokobauno’ eu não fazia ainda o programa com ele, eu não sei o que ele estava sentindo no momento, qual era seu estado de espírito, como ele estaa reagindo; mas com certeza tem muito de rebeldia nesse grito. Muito de rebeldia, de grito de guerra, de liberdade, de desabafo, de a gente querer cutucar as pessoas. Várias pessoas inclusive quando ouviam o programa reclamavam “pô, estava legal até tal hora, aí você meteu o som do Morphine e começou a gritar aquele sokobauno, desliguei o rádio”. Tinha gente que não suportava. Mas era para isso mesmo, para cutucar, para levantar a poeira.

Minha relação e do Juju sempre foi meio yin-yang. O Juju gritava sokobauno e eu gritava sokobauno em resposta. Mas a coisa não tinha pegado. Em 2000, 2001 eu fui num Enearte de carona com o pessoal das artes. Fomos lá pra São Luís e depois, com minha namorada na época, fui dar um passeio para os lados dos lençóis. E ali tem toda uma dinâmica de ecossistema diferente do que estamos acostumados aqui no sul e sudeste, de praias. A maré lá, quando abaixa, abaixa 2, 3km, você vê aquela praia enorme, aquele banco de areia enorme. E quando sobe, sobe muito rápido. De noite, em especial em lua cheia, a água brilha por causa dos plânctons. Isso me marcou muito, esses plânctons na água, em várias situações. Foi uma viagem muito bacana.

Depois que retornei, num belo dia o Juju mandou o sokobauno‘ e eu respondi ‘plâncton’, e incorporei como meu grito de guerra no Quizéé…; mas nesse sentido bem yin-yang. O Juju, a personalidade dele, o gosto musical dele, a influência dele no programa sempre foi essa coisa mais sokobáunica, mais obscura, mais pesada e gutural, uma coisa mesmo para incomodar. E eu sempre fui uma coisa mais planctônica, mas colorida, mais derretida, às vezes mais suave, mais lúdica. Mas claro, ele sempre sem esquecer do lado planctônico dele, e eu sem esquecer meu lado sokobáunico. Tem muito a ver com essa coisa taoísta, masculino e feminino, calmo e intranquilo.

Você tem textos, e outros materiais sobre o programa, que poderia me passar? E gravações que possa me passar em wav, mp3 ou ogg?

Basicamente é isso, se você tiver mais indagações é só me escrever. Vou te passar os linques também, estamos abertos.

 

Paulo Loureiro respondeu às mesmas perguntas, em 2 de junho de 2012.

 

Qual o nome do programa?

QUIZÉÉ ANSSIM, NUM QUIZÉÉ ANSSIM TUMÉM.

Meu interesse por rádio é hereditário, meu pai já foi locutor de rádio em Araçatuba, interior de São Paulo, no começo da rádio, por aquelas bandas. O diretor da rádio Araçatuba na época era então o Bolinha, lembra? Do programa da Bandeirantes. Meu tio também era locutor e cronista da rádio.

Fui muito influenciado pelo Mirco Z, programador de Os Antropoides, programa da Muda na época; participei de alguns programas e por fim tive vontade de fazer um meu na Muda.

Quando comecei o programa, em 1997 tinha, vontade de fazer um programa de radioteatro. Meu primeiro parceiro foi Gustavo Palma, colega de artes cênicas, curso que fiz na Unicamp. Na época andávamos muito com o pessoal do elenco da Boa Cia., de Barão Geraldo. Eles compareceram na inauguração e durante o programa o Momo (o ator Moacir) contou uma máxima do avô dele que era assim: “meu filho, às veiz as coisa tá runha, as veiz as coisas tá boa, mas se quisé é assim… se não quisé é assim também”. Nessa hora tive a ideia de usar como nome, pois ainda não tínhamos um, então ficou “SE QUISER É ASSIM, SE NÃO QUISER É ASSIM TAMBÉM”. Eu estava no segundo ano de cênicas, sexto de Unicamp (fui engenheiro antes).

Com o passar dos anos sofri influência pesada dos poetas concretistas (Haroldo, Augusto, Décio) e das obras que eles traduziam (J. Cage, G. Stein, E. Pound, E.E. Cummings etc). Também havia entrado de cabeça na performance como linguagem teatral, o que me levou a estudar semiótica, que por sua vez me levou a ouvir coisas estranhas (Cage, Stockhausen, Varèse etc). O nome evoluiu junto com o programa, que deixou de tentar ser ser radioteatro pra ser experiência de não-comunicação, ou sei lá o quê, tipo esquizofonia!

Passou a se chamar QUIZÉÉ ANSSIM… NUM QUIZÉÉ ANSSIM TUMÉM. Acho que dá para entender.

Por quanto tempo durou/dura (se houve períodos de pausa etc), quando era, de que horas até que horas?

Se minha memória confusa me permite, acho que foi de 1997 até 2007 ou mais. Quando parou, apenas o Camilo fazia; eu vim para São Paulo em 2000, passei a não poder continuar sempre, foram rareando minhas aparições, e por fim ele manteve o programa sozinho acho, que até 2007 2008. Ele deve saber melhor isso que eu.

Mas para nós é um sonho, uma experimentação de linguagem que norteia nossas vidas até hoje. Ainda continuo a produzir, ora usando material dos antigos programas, ora procurando evoluir daquelas experiências para o mundo digital, usando o Sony Soundforge e Vegas. Ainda posto coisas no Sound Cloud e ainda vamos produzir um podcast e continuar a incomodar e provocar com muita esquizofonia pela web.

Não me lembro de períodos de pausa, a não ser nas férias. Essa parte eu fumei. Acho que começou de segunda às 23h ou 22h, não lembro. Mas com certeza sempre foi de duas horas, uma vez por semana, sem interrupção, acho que quase sempre às segundas, depois quintas, e quase sempre no período noturno por volta das 23h.

Por vezes fazíamos mais de uma vez por semana para cobrir buracos na programação, e algumas vezes mais de duas horas porque o programador do próximo horário não aparecia.

Nessa época levávamos a bandeira das rádios livres com muito fervor, sempre que podíamos estávamos na Muda, interferindo ou fumando uns.

Quem eram os programadores?

Os programadores que fizeram do Quizéé… o que o Quizéé… foi, é e será, são Paulo Sokobauno (Juju), eu, e Camilo Plancton (Veet). Mas não poderia deixar de citar todos que fizeram parte da história do Quizéé…, ou pelo menos interferiram muito nela, e tiraram dele todo o potencial que tinha; listando:

  • Paulo Loureiro Junior (ou Paulo Sokobuano): eu. Fundador, criador, mantenedor, diretor, o louco que primeiro que sonhou o esquizo como fonia.

  • Gustavo Palma (ou Gustavo Sol): Permaneceu apenas seis meses, quando o sonho ainda era radioteatro. Sem ele eu não teria começado, foi dele a ideia de pegar um horário na Muda.

  • Mirco Z: Que na verdade era um dos grandes agitadores da Muda na época, me iniciou nas músicas esquisitas como minimalismo, concretismo, música étnica e tudo quanto é tipo de novidade. Esteve presente como programador convidado quase até aparecer o Camilo. É o responsável por eu me tornar esquizo e fônico, e programador de um dos melhores programas da Muda, Os Antropoides, que veio a ser o nome de meu grupo de performance e pirofagia na mesma época.

  • André Batalha: Foi um achado do Mirco, e quem trouxe as novidades contemporâneas musicais pra nós. Foi quem nos fez ouvir Pierre Schaefer e o concretismo musical, depois os movimentos de música eletroacústica, serialismo, minimalismo, música étnica, Varèse, entre muitos outros. Esteve presente comigo no programa por pelo menos um ano ou mais. Ele me falou de John Cage e outros. Um completo alucinado com uns óculos fundo-de-garrafa que nos torceu os ouvidos, graças a deus!

  • Camilo Onabomber Placton: Dispensa comentários, pois herdou o Quizéé… e o levou sem minha presença, tornando esse programa maior do que eu, ele e todos.

  • E u s é b i o: Além de fora da casinha e mesmo sem entender nada do que estava sendo feito, esteve por muito tempo conosco no programa, tornando-se uma das maiores fontes de absurdos inesperados, contrapontos abusivos, não nos permitindo manter o planejado mesmo que quiséssemos. Mais uma fonte inesgotável de acaso do que um programador, mas não poderia deixar de citá-lo.

Não posso deixar de mencionar os Batatas Cantantes, Thiagão e Thiaguinho, quase sempre presentes, além de nos terem trazido Deleuze e muitas outras coisas.

Espero não ser injusto com ninguém. Mas, sabe, essa parte da memória é afetada pelo uso de substâncias químicas de distorção da realidade ou alucinógenos dos mais diversos tipos que sempre fizeram parte da história do Quizéé…, pois estávamos sempre sob o efeito dessas substâncias narcóticas. Podemos dizer que elas também são programadoras do Quizéé…, pois muito influenciaram os meninos que usavam os microfones e colocavam as agulhas pra tocar.

Vale lembrar que sempre foi um programa visitado. E muito visitado. Todos que pela Muda passaram, durante o programa eram forçadamente voluntários, quisessem ou não: tínhamos de fazer jus ao nome. Tivemos desde entrevistas até dançarinas participando do programa, e até um striptease ao vivo. É claro que também fizemos música ao vivo. Talvez o melhor fosse perguntar o que não fazíamos.

***

Conheci Camilo num dia que ele, Thiagão, Thiaguinho e Breno foram fazer um programa que começava depois de Os Antropoides, se não me engano. Não nos falamos.

Passaram anos, até que um dia ele apareceu no programa. Já era outra pessoa, muito diferente do moleque que eu tinha visto. Disse que gostava do Quizéé…, o que para mim era surpresa, nunca ninguém tinha dito isso. Disse que viria no próximo e voltou, no próximo e no outro, e no outro e assim por diante. Foi quem mais absorveu as ideias esquizofônicas, quem mais apostou na nossa loucura de linguagem e o grande divulgador da esquizofonia. Se eu sou o criador-fundador, ele é o quem difundiu, evoluiu e transformou o Quizéé…

Pode-se dizer com certeza que os programadores, criadores, sonhadores, fundadores do Quizéé… são Sokobauno e Plâncton. Depois, os outros.


postado em 9 de dezembro de 2012, categoria Uncategorized : , , , , , , ,

Sobre o vídeo “Eroica de Beethoven: acordes iniciais”, uma pequena entrevista com Erik Carlson

Realizada por e-mail, nos dias 25 e 26 de junho de 2012. Entrevista por Henrique Iwao. Tradução do inglês para o português e revisão por Sofia Betancor e Henrique Iwao.

Oi Erik. Em primeiro lugar, você poderia me contar um pouco sobre quem é você, onde você mora e qual o seu envolvimento com pesquisa e o fazer musical?

Sou violinista e moro em Nova Iorque. Tocar com o Ensemble Contemporâneo Internacional é meu trabalho principal. Também componho um pouco à parte, como você pôde ver no meu sítio de internet.

Qual é o contexto exato em que você fez o vídeo? Foi parte de uma pesquisa? Pode ser considerado um videoclipe? Ou música per se?

O vídeo surgiu de partes iguais de curiosidade e amor. Eu amo a sinfonia [Eroica], e gosto de quase todos os diversos estilos de tocá-la. A ideia para o vídeo teve várias fontes – venho escrevendo uma peça orquestral usando sons de abertura de outras obras para orquestra, arranjadas cronologicamente. Havia também uma peça de dança, de Ohad Naharin, que vi recentemente, em que repetidamente começava a mesma frase muitas vezes. E também, claro, uma de minhas peças favoritas de música, z24 de John Oswald +.

O início da Terceira sinfonia de Beethoven pareceu perfeito por ser muito curto e bem reconhecível, é uma entidade independente (facilmente removível de seu contexto), e também foi extensivamente gravado. Quando tive a ideia fiquei extremamente curioso em como soaria e se desenvolveria.

Não sei ao certo como categorizar o vídeo. Fi-lo com o Youtube em mente, como um bom hospedeiro para ele. O vídeo é o que é.

O que você acha que esse tipo de abordagem tem a oferecer, em perspectivas tanto musicológicas quanto de experiência estética?

Eu gosto da pouca quantidade de informação concentrada no vídeo. Você pode ouvir as diferenças de tecnologia de gravação, de tempos, altura, duração, balanço, articulação, espaço de gravação, intenção expressiva, e até mesmo masterização. E acho que leva a questões interessantes, como: quais características foram de propósito? E o que vem a seguir?

Mais do que isso eu espero que seja um pouco esdrúxulo. Além de alimentar uma curiosidade, espero ser um deleite, e por vezes humorado.

Você tem alguma conclusão sobre as diferenças obtidas entre aberturas?

Acho que a informação mais interessante, nessas gravações, de estilo e escolhas expressivas, desafiam minhas habilidades de explanação escrita, e são melhor compiladas com apenas a escuta cuidadosa às gravações. O que me sinto apto a colocar em palavras são somente as conclusões mais básicas, como a de que a tecnologia de microfones melhorou consideravelmente desde a década de 1920.

Você tem algum comentário sobre a disposição cronológica? Você acha que se mostra nos sons dispostos?

Certamente, em aspectos técnicos como a qualidade de som. É difícil dizer sobre interpretação. Obviamente a maioria das performances não são gravadas, então enquanto é possível perceber tendências gerais, cronologicamente, no vídeo, eu sinto que são amostras tão pequenas de performances que seria complicado fazer generalizações sem mais informação.

***

Corolário: z24, de John Oswald.

+ Nessa obra, Oswald sobrepõe 24 versões diferentes da abertura de Also Sprach Zaratustra, de Richard Strauss. As sobreposições são organizadas mantendo o primeiro ataque do acorde de dó-maior sincronizado entre todas elas. A Seeland lançou uma colet nea contendo essa obra. Ela pode ser comprada aqui.


postado em 9 de agosto de 2012, categoria Uncategorized : , , , , ,

Plágio? Uma conversa com Guilherme Rebecchi

Realizada através de sistema de conversa via internet, dia 11 de junho de 2012. Resposta adicional dada por Victor Valentim, dia 12 de junho de 2012. Entrevista por Henrique Iwao. Revisão por Sofia Betancor.

[A. Conversa com Guilherme Rebecchi]

Olá, Rebecchi. No VIII Encontro Nacional de Compositores Universitários, em Goiânia, na Universidade Federal de Goiânia (UFG), no dia 25 de outubro de 2010, foi apresentado uma obra supostamente sua. Gostaria de saber sobre ela, pois era basicamente uma gravação do primeiro movimento da Sonata op. 27 no. 2 “ao luar”, de Beethoven.

Ocorreu um fracasso.

Explique o que aconteceu. Foi uma situação bastante estranha.

Imagino. Até hoje não consegui falar com o rapaz que projetou. Aquilo foi uma gravação do Beethoven, não uma música que fiz.

Mas tinha um errinho nela, no meio; como um erro de codificação MP3, que fez com que todo mundo ficasse imaginando que ia acontecer algo. As pessoas ficaram se entreolhando. Foi bem bacana, ao meu ver, uma situação ímpar. Mas enfim, explique.

Curioso. Sim, vou te mandar a música. Se estiver no meu e-mail te mando já.

Certo, você tem as informações, nome, data, quando foi esse dia em que ocorreu o fracasso? Isso ajudaria também. Mas me explique o que gerou aquela versão que presenciamos.

Também não sei. Te mandei o e-mail com a música que era para ter sido tocada. Mas essa série de músicas tem isso: como a ideia é ser uma parceria de duas pessoas que não eu, fica uma sensação de estranhamento. Mas acho que foi válida a experiência.

[Informação do e-mail:
Título: Série Parcerias – O Rei dos campos de beterraba (Sonata tan-sá).
Autor: Guilherme Rebecchi Kawakami.
Ano da composição: 2010.
Categoria: envio de peças eletroacústicas.
Nota de concerto: Nesta série, parcerias aparentemente impossíveis são forjadas por um terceiro agente.]

Estou ouvindo. É um mashup?

Quase. Alego a diferença por querer tratar da questão autoral. É como se duas pessoas fizessem uma parceria, mas ela é improvável. Com isso, quem seria o autor? Com essa série eu quero tratar dos limites da autoria. No entanto, é um mashup, na prática.

A versão que recebi aqui também é estranha. Ela tem 43 segundos, é isso?

Isso. É apenas um recorte sem edição de uma música do Roberto Carlos.

Entendi, então não é um mashup, na prática; é um pseudomashup.

Digo, pra quem escuta.

Você induz o ouvinte, pelo título a pensar que aquilo, o piano do início, realizando harpejos, poderia ser Beethoven.

Isso. Tem a indução. Nessa música não tem nada de Beethoven que eu tenha colocado; só o título. Mas cada música é um caso diferente. Tem mais duas aqui: http://sussurro.musica.ufrj.br/pqrst/r/rebecchi/.

Você consideraria a peça, tal como apresentada no Encun, como uma peça tua?

Boa pergunta. Provavelmente sim, pois deve ter gerado um estranhamento e as pessoas devem ter pensado sobre a autoria, embora devam ter achado muito ruim.

De qualquer forma, mesmo na outra peça, o foco não é o acontecimento em si, mas os desdobramentos. Certo?

Sim, além da diversão. Só não é no caso, nessa série parcerias, da música Sino (Ockeghem & Björk).

E esse interesse pelos limites autorais? Você tem alguma opinião sobre a questão da autoria, afora a exploração dessas áreas de dúvida? Ou algum pensamento sobre essas áreas difusas, entre a apropriação, a criação e o plágio?

Sim. Tem a questão que uma criação contém criações anteriores, seja por citação, referência ou pelo conhecimento gerado pelas criações anteriores. Tem também a questão de ego e comercial. Não creio que uma produção intelectual possa ser exclusivamente de uma pessoa.

Mas isso não exclui a categoria plágio, mesmo admitindo que a apropriação move a cultura, que as práticas de apropriação sejam um dos motores do desenvolvimento da cultura.

Não exclui o plágio. É interessante.

De qualquer forma, um plágio categórico se faz passar pela música que plagia. Isso não ocorre em O Rei dos campos de beterraba (Sonata tan-sá). Mas já quanto ao Beethoven tocado no Encun…

O plágio é uma caracterização de algo além da citação e sem fazer referência ao autor.

Ocorreu um plágio no Encun. Mas não me preocupo tanto com o plágio, que eu vá plagiar mesmo algo, porque isso está distante da minha atuação.

E esse plágio que ocorreu no Encun. Você o atribui ao Victor? Quer dizer, qual o papel do Victor nessa história?

Não, porque não sei o que ocorreu. Não sei se enviei um arquivo errado. E também, ele deveria ter passado o som com a música ou tê-la escutado antes.

[Guilherme está ocupado(a). Talvez agora não seja uma boa hora.]

***1

[B. Troca de mensagens com Victor Valentim]

Olá Victor, sobre o episódio Rebecchi, no VIII ENCUn. Você pode me explicar como é que foi tocado o “arquivo errado”?

Olá Henrique. Acho que foi porque o Rebecchi não tinha feito a inscrição no site do Encun na época, então eu mandei um e-mail pedindo que ele me mandasse uma peça para que não ficasse de fora do concerto. Ele deve ter me mandado o arquivo errado por e-mail, por engano, e eu, como estava com muito material pra organizar para o concerto, acabei me esquecendo de avisá-lo. Daí a confusão, porque ele mandou o arquivo certo para a Laiana e ela não me encaminhou. Não fizemos isso de malgrado de nenhuma forma, gostamos muito do Rebecchi e devemos infinitas desculpas a ele.

Abração, Valentim.

***

1Fim da entrevista com Rebecchi: achei curiosa essa mensagem aparecer exatamente nesse ponto. Dei boas risadas.


postado em 5 de agosto de 2012, categoria Uncategorized : , , , , , , ,

Quantidade é Qualidade, uma entrevista com Johannes Kreidler

Realizada por e-mail, entre 18 de abril e 26 de maio de 2012, por Henrique Iwao. Traduzida do inglês para o português.

Sobre Product Placements: seu vídeo documenta bem os aspectos políticos e performáticos da peça. Por isso, minhas perguntas tomarão outra direção: do material musical utilizado e da estruturação da peça. Você disse ter usado 70.200 peças de música – como diz o vídeo: “citações”. Como você escolheu estas 70.200 peças? Como você procedeu para sequenciar essa quantidade imensa de amostras, e como as estruturou?

É claro que não cortei à mão, com tesoura. Programei um programa computacional [patch] que reúne aleatoriamente todos os sons de meu HD. O que eu podia modificar era a densidade rítmica e o envelope. Então escolhi as passagens que eu mais gostava, combinando com alguns trechos feitos à mão, como o som do piano, o som de percussão e a citação ao fim. Montei uma forma com duas ondas [dois arcos] e uma coda.

Sobre seus hábitos de escuta: você disse que estes 70.200 representam a grande quantidade de acessos que arquivos de vídeo e áudio recebem na internet. Pode-se dizer então que a música em seu HD representa também a vastidão do que há disponível para se ouvir na internet?

Sim, as 70.200 citações representam os milhões de peças musicais disponíveis, e os 33 segundos são simbólicos para a compressão, a técnica que torna possível tê-las na internet.

O que você costuma escutar?

Eu tive uma formação de música clássica, mas escuto praticamente de tudo.

Você escuta tudo o que há de música no seu HD? Existe nele algo que você guardou, mas nunca escutou?

Claro que não ouço tudo que tenho no meu HD!

Em alguns momentos essas amostras são partículas sonoras ouvidas como texturas e/ou objetos sonoros. Em outros, elas são amostras de tamanho maior, bastante reconhecíveis: piano, caixa clara, uma nota cadencial grave no piano, um desdobramento cafona de acordes no final. Qual a função que eles têm na peça, tanto simbólica quanto estruturalmente?

Musicalmente funcionam como bordas da forma total e articulam o fluxo. Ademais, eu quis sons que ficassem entre a grande massa de amostras que fossem facilmente reconhecíveis. Daí a questão é se estes sons podem ser considerados citações (me perguntaram se o piano era Beatles), ou se eles contam simplesmente como sons livres…

Essa ambigüidade é muito legal. De um modo, você sempre faz pastiches com sons que não têm o que John Oswald chama de “gancho”: não são individualmente identificáveis. Esta é uma coisa que difere a sua estética da do plunderphonics [pilhagem sonora], de Oswald. Você poderia contar um pouco sobre isso? E sobre sua relação com o pastiche musical?

Sim, eu gosto de ir nessa linha com a questão: isso é uma citação clara ou não? Mas, no geral, acredito muito em colagem hoje em dia; somos sensíveis o suficiente para enxergar pastiches em todos os lugares, artigos da Wikipedia, atributos de gênero, filosofia pessoal… “Tudo é um remix”.

À parte a analogia já mencionada, a duração total do vídeo (cerca de 33 segundos) é especialmente relevante para você, numericamente ou por alguma outra razão?

Eu queria que a peça fosse curta, por volta de meio minuto, e queria uma duração que fosse facilmente memorizada.

Sobre o termo “citações”: qual palavra alemã você usaria para isso? E sobre citação: não podemos realmente citar uma letra ou uma palavra, porque são elementos da linguagem ela mesma. De certa forma, se você se aproximar da duração de uma única amostra para cada excerto musical, você se depara com o mesmo problema. Suscita questões sobre a presença do musical: trata-se uma colagem? A amostra está lá, como se tirada de outra música, ou é uma representação de uma amostra, realizada digitalmente, usando os mesmos números daquela que representa. Você acha que o termo “citação” é apropriado para essa circunstância? Você já pensou sobre a relação entre sampleamento e o tamanho da amostra?

Em alemão diríamos zitatefremdanteile ou fremdmaterial; ou samples, também. Mas, como você disse, é a grande questão não respondida, quando é simplesmente um som [tone] ou quando é uma citação (que pertence a alguém, protegida/proibida pela lei).

Esta questão esteve presente nos debates sobre sua performance? Você entregou milhares de formulários de licenciamento das amostras utilizadas para a GEMA [a sociedade alemã de direitos musicais de performance e reprodução mecânica]. Entretanto, as pessoas, ouvindo sua obra, não podiam dizer se você usou ou não essas peças declaradas nos formulários…

Sim. As pessoas hoje em dia estão completamente incertas sobre quando há uma citação e quando as leis de direitos autorais podem ser aplicadas. Um problema grande para blogues, ao menos na Alemanha. Embutir um vídeo do Youtube num blog já pode ser considerado uma infração de direitos autorais. É terrível.

Quando o tamanho da amostra é menor, perde-se a identidade dela, e músicas distintas podem ser mixadas indistamente. Posso interpretar isso de duas formas: como se minha percepção não fosse rápida o suficiente, não conseguindo distinguir entre partículas sonoras e fragmentos – talvez, se eu fosse um pássaro, conseguisse… Ou então como se houvesse um denominador comum entre cada música – algo como elementos mínimos, iguais. O que você pensa sobre isso?

Na minha pequena peça [Product Placements] eu quis compor indo desde milhares de partículas sonoras (que, claro, criam ruídos) até uma única citação de 2 segundos de duração, ao final (que é definitivamente reconhecível como tal). E no ínterim, então, tem de tudo. Portanto não há como alegar não haver citações nesta peça e não há como alegar só haverem citações nela. Acho isso, musicalmente e conceitualmente, o mais interessante de tudo.

Sobre Compression Sound Art (2009): com a digitalização, tudo pode ser traduzido/transposto/transformado usando as mesmas regras, pois pode ser tratado como número. Vejo que você explora esse nivelamento utilizando exemplos sarcásticos e irônicos. Isto parece mostrar algumas coisas: podemos comprimir informação, mas não significado; podemos trivializar coisas de dois modos, fazendo-as parecer muito iguais (apenas informação na era da informação, dos meios de comunicação de massas [mass media]) ou fazendo-as muito diferentes (com frases como “a bíblia é <a verdade>, o torá não é,” etc). Você teria algum comentário a partir disso?

Boas observações. Mas você poderia também pensar numa mudança de percepção: talvez, para uma mosca, um segundo seja equivalente a uma hora para humanos. Como computadores e alto-falantes podem produzir freqüências que humanos não conseguem ouvir, mas morcegos sim, você poderia pensar que máquinas podem fazer compressões de áudio passíveis de decodificação por outros animais, e por outros computadores. Há quem diga que devemos tratar computadores como sistemas vivos.

Há aí algum trocadilho/crítica sobre o pensamento católico?

Claro, há uma crítica ao pensamento católico.

Há uma seção em que as imagens são a informação. Assim que se compreende isso, é possível descomprimir os dados (memória dos sons) e preencher as brechas sonoras com nossa imaginação. É bem bacana!

Boa e velha teoria semiótica, a diferença entre significado/significante.

Indo mais para o aspecto técnico da peça, como você fez as compressões? Sinceramente, Você atuou como no texto da peça, fez o que o texto diz ter sido feito? Você poderia dar exemplos de como fez?

Não me lembro exatamente, alguns exemplos estão certos (em Beethoven [“sinfonias completas tocadas em 1 segundo”], você até pode escutar o coro da Nona Sinfonia no fim). Alguns não estão. Usei um plug-in VST, da Sony, eu acho.

Existe uma citação famosa do Merzbow, Masami Akita: “Se ‘ruído’ significa som desconfortável, então música pop é ruído para mim” [entrevista com Oskari Mertalo, 1991]. Lembro de você dizer algo similar num vídeo – não me recordo qual; que para você música pop é ruído cotidiano e, portanto, material composicional. Embora semelhante à frase de Masami, tem um significado totalmente diferente. Você poderia comentar?

Ah, obrigado, eu não conhecia essa citação. Na realidade eu quis dizer o mesmo que Merzbow. Nessa entrevista (http://www.kreidler-net.de/__theorie/neural-interview.htm), ao fim, eu disse que gosto de fazer música ruidosa. Música pop é ruído!

Creio que Merzbow quis dizer que desgostava de música pop e a tratava com indiferença (como barulho, indesejável). Sua atitude parece ser mais como: fazer música artística com os escombros, os ruídos da sociedade contemporânea, ou seja, com a música pop. É por isso, eu penso, que você utiliza músicas pop não famosas. Você usa temas famosos principalmente pelo conteúdo semântico, mas não músicas pop famosas pois, uma vez famosas, perdem a qualidade de ruído, esse aspecto de sobras. Você concorda?

Sim, mas ainda é algo que eu desgosto. Eu gosto de citar coisas que eu não gosto.


postado em 30 de junho de 2012, categoria Uncategorized : , , , , ,

Improviso em Branco e Preto e Vermelho, uma entrevista com Mário Del Nunzio

Por Henrique Iwao. Realizada na sede 1 do Ibrasotope, São Paulo, 28 de março de 2012, 21h.

Improviso em Branco e Preto (carta às videntes), 2004

Qual o critério para escolha do material? Todo ele advém de gravações?

Existem dois momentos, relativamente sutis, que são de sínteses, mas a maior parte do material vem de gravações. De modo similar ao que acontece em O Chá, o material provém de gravações que se faziam presentes na minha coleção de Cds. Entretanto, diferentemente da peça supracitada, o material aqui passou por uma seleção bastante criteriosa.

É mesmo?

As fontes principais são de dois tipos: solos de bateria de bandas de rock; e excertos de percussão de música contemporânea. A partir desses dois tipos de material eu trabalhei com a suposição de que os excertos escolhidos de bandas de rock contêm uma gestualidade e tipos de articulação bastante próximos, mas com características sonoras advindas de escolhas timbrísticas e processos de gravação que as tornam bastante individualizadas.

Uma anotação que eu tenho aqui da época diz o seguinte: ‪”[Gesto padronizado versus timbres individuais; ênfase na preocupação com som (seguida pela preocupação com a realização virtuosística da performance); performance voltada à demonstração de domínio em determinados padrões realizados de modo altamente energético com grande velocidade].”

E essas características das bandas de rock se contrapõem ao que ocorre no âmbito da “percussão contemporânea”, nas quais os tipos de articulação e gestualidade são bastante diversos, mas não está presente, por exemplo, a preocupação com os tipos de gravação ou o que isso influencia na característica sonora da obra.

Nessa peça buscou-se a manutenção de um nível de energia bastante alto durante sua maior parte – exceto os momentos de síntese, mais ou menos -, e isso foi determinante para a escolha dos trechos que entraram na peça. Ou seja, são matérias que advêm de momentos com uma atividade bastante alta, em que as pessoas tocam um monte de coisa.

Tem outra coisa. O solo dos bateristas de rock são majoritariamente no estilo “discos de guitarrista”.

O que isso quer dizer?

Rock instrumental com um milhão de notas por segundo. Nos meus arquivos, consta que usei as seguintes músicas:

  • Reynold Carlson (Joey Tafolla: Out of the Sun)

  • Richard Christy (Death: The Sound of Perseverance)

  • Anders Johansson (Rolf Munkes: No more Obscurity)

  • Scott Travis (Racer X: Live Extreme Volume)

  • Scott Travis (Judas Priest: Painkiller)

  • Deen Castronovo (Marty Friedman: Dragon’s Kiss)

  • Marcel Cardoso (Diablerie: The Breach of the Masquerade)

  • Gerald Kloos (Rolf Munkes: No more Obscurity)

  • Mike Portnoy (Dream Theater: Awake)

  • Mike Terrana (Mike Terrana: Shadows of the past)

São coisas que você escutava?

São coisas que tinham na minha coleção de discos. As músicas contemporâneas utilizados foram:

  • Karlheinz Stockhausen: Gruppen (Orquestra Filarmônica de Berlim, Claudio Abbado)

  • Iannis Xenakis: Pleiades (Kroumata Percussion Ensemble)

  • Iannis Xenakis: Okho (Trio Le Cercle)

  • Iannis Xenakis: Psappha (Gert Mortensen)

  • James Dillon: Ti-re-Ti-ke-Dha (Guy Frisch)

  • Bruno Maderna: Hyperion (Asko Ensemble, Peter Eotvos)

  • Marc Monnet: Le Cirque (Armand Angster)

  • Allain Gaussain: Chakra (Quarteto Arditti)

Ah, eu imaginava que era isso mesmo (quanto às músicas contemporâneas; as músicas de rock eu desconheço). Eu ouvia seus CDs. Naquela época não era tão fácil achar essas coisas. Só não lembro do Gaussain…

Agora, eu queria saber se, afora questões mencionadas de escolha, existe alguma outra que se relaciona com essa primeira de “fazer uma música usando os CDs disponíveis, com trechos de percussão”? Por que pegar CDs da sua coleção, que envolvem percussão, e fazer uma música?

Ok. Estamos no início do ano de 2004; eu estava começando a fazer coisas no computador, com eletrônica, etc. Até esse momento eu tinha feito uma única peça, Nec Spe Nec Metu, que é feita somente utilizando síntese. Se eu me lembro bem, eu tinha vontade de trabalhar com outras coisas, mas essa vontade era restringida por outros fatores, tais como, por exemplo, a falta de um local para trabalho caso eu quisesse gravar coisas. Tive uma experiência frustrada com isso, no estúdio na Unicamp, nessa época.

A falta de intérpretes para tocar música escrita, que eu fazia bastante na época – elas tinham que ficar na gaveta. Então eu me vi na situação de fazer com o material que eu tivesse à disposição. Nesse momento não existe uma razão ideológica para trabalhar com os CDs, era uma questão de possibilidade mesmo, de realização da música. E se eu tinha vontade de trabalhar um material como esse, era muito mais fácil recorrer ao que estava na mão do que lidar com uma outra situação que envolveria a cooptação de pessoas e convencimento, e que me parecia muito mais estressante e menos recompensadora musicalmente.

Quando você em fala material como esse, isso significa que você já tinha em mente uma obra a ser feita ou um material a ser trabalhado?

Nesse caso, evidentemente, sim. Como seria a articulação de um excerto para outro, sim. Na medida que eu comecei a composição da peça ficou razoavelmente clara a ideia formal.

Mas a composição de uma peça eletroacústica implica em certas coisas, certas especificidades…

No momento que eu comecei a compor, a ligação com as gravações, as diferenças de timbre se pronunciaram e isso se mostrou importante. Eu procurava similaridades gestuais e de como isso poderia se relacionar com uma peça do Xenakis, que é o que ocorre numa espécie de clímax da peça, nos 4’54-5, na qual existe uma fusão de timbres de rock e de percussão contemporânea. Pelo que me lembro foi uma das primeiras coisas que fiz nessa peça.

A ideia da colagem, de usar trechos de peças, já existia antes desse contato com as gravações?

Eu poderia pensar uma peça para percussão que teria características gestuais similares a essa peça, mas que deveria levar em consideração outros aspectos. Mas a situação prática não me permitia nem pensar nessa alternativa, se eu quisesse uma realização sonora da peça, a curto prazo.

E sobre as transições entre cada excerto?

Isso é uma coisa que ficou bastante informal nessa peça, até o meio dela especialmente. Eu ia encadeando trechos que tivessem alguma característica que permitisse encadeamento. Até o meio ela tem de fato essa característica de improviso, uma coisa segue a outra e eu tento fazer com que aquilo tenha sentido. Ou seja, entre um gesto similar ou uma articulação, às vezes, tem um pequeno ralentando, é tudo caso a caso.

Na segunda metade, depois do trecho tecno, tem umas coisas que são determinadas por interferências – joguinhos composicionais. E a outra que tinha também eram os acordes orquestrais pesados que articulavam alguns momentos de transição entre fragmentos.

Do Maderna…

Maderna, Stockhausen, Kurtag e Xenakis, eu acho.

E no trecho tecno existe algum tipo de, de certa forma, clímax; ele é um momento que se destaca. Pelo próprio fato de você chamar de tecno, há uma referência?

Na verdade meu interesse musical em relação à música tecno e de pista em geral é quase nulo. Eu suponho que esse trecho tenha um tanto a ver com uma peça que Bernardo fez na época, Frankfurt, Frankfurt. Mas era algo subjetivo, uma brincadeira, uma pequena resposta, uma outra possibilidade.

Um outro nome desse trecho tecno pra mim é trecho matriz1. Especialmente quando entram os acordes de Stockhausen.

E, assim, de modo algum eu vejo como um clímax da peça. Ele é uma espécie de intruso.

Intruso como uma dança no meio do Concerto para Violino de Mozart, o concerto.

Isso.

Há um contraste claro nesse trecho. Os ritmos periódicos, pulsantes, e finalmente os acordes. Antes, estes acordes só pontuavam. Poderia ser lido como um comentário acerca de um encontro de Stockhausen e os Tecnocratas?

A questão era puramente do material musical mesmo. Não tem nada a ver com esse artigo2.

Algum motivo especial para os acordes de Gruppen?

Os acordes que articulavam a primeira parte da peça eram mais ou menos similares a isso aí, em termo de instrumentos e sonoridade.

Certo. Uma última pergunta. Pelo que conversamos e pelo que conheço de ti, são dois períodos de escuta, o Rock que você ouvia antes, principalmente quando adolescente e a música contemporânea, a qual você se dedicou depois. Na peça, há uma tentativa, bem sucedida ao meu ver, de juntá-los, de um modo que valorize ambos. Como isso se deu?

(pausa longa) Não sei. Não sei responder a essa questão.

***

Vermelho (2008)

Em Vermelho temos, de material retirado de outras fontes, 66 excertos de bandas de música de metal violento do mal, metal do capeta. Diferentemente da outra peça, esses 66 trechos foram coisas que baixei da internet só para isso mesmo; não faziam parte de coisas que eu ouvia ou da minha coleção de discos.

A outra coisa principal são diversas versões da Internacional, nove versões iniciais que são depois misturadas, via phase vocoder (da Internacional em albanês com a em chinês, que gera uma coisa “sino-albanesa”). Uma terceira coisa relevante nessa peça é que a estrutura dela é derivada de um aspecto formal de outra peça, Il Canto Sospeso, de Luigi Nono.

Por que a estrutura?

Porque Nono é talvez o exemplo mais recorrente de compositor assumida e engajadamente comunista.

E isso se liga ao conceito, “Vermelho”?

Exato.

Pode falar sobre isso?

Provavelmente de um ponto de vista simbólico, o vermelho nessa peça se associa mais enfaticamente a comunismo e sangue.

Por que utiliza-lo como símbolo para isso?

Não tem porquê. Na minha cabeça é isso.

Qual a relação do tema com a dança?

Foi a Melina que disse que chama Vermelho; a relação é nenhuma e elas ficaram duas semanas debatendo o que era vermelho para a dança. Mas, no meu método de trabalho com a Melina na época, isso era absolutamente desconsiderável – elas iam fazer uma coisa e eu ia fazer outra. Essas duas coisas seriam eventualmente juntadas. Aí tinha essa temática: “vermelho” e em algum momento foi sugerido que eu pensasse em coisas que eu associasse à cor vermelha. Para mim são essas duas coisas que foram ditas.

Foi como um ponto de partida?

Foi um ponto de partida para a formulação da estrutura da peça, cujas proporções são derivadas da série do Nono, para a escolha desses dois tipos de material.

E sangue tem a ver com o número 66?

Sangue tem a ver com canções como Ritual dos Depravados, Sangue Nórdico, Automutilação, ou Portador do Terror; Campos de Devastação, Assassino Serial, Necrófago.

Sim, mas a temática dessas canções me parece bastante associável ao diabo, numerologicamente ligado ao número 666 e derivações.

Sim, tem.

Esta peça tem basicamente mais dois tipos de material. Coisas sintetizadas e trechos de uma peça minha que é anterior e/ou posterior, que é Fragmentos de Vermelho. Fragmentos de Vermelho é uma peça composta por 30 micropeças, cada uma com uma duração algo entre 0.5 e 2 segundos.

Também uma trilha para dança na qual Juliana França pediu “uma música com trinta músicas de um segundo cada”.

Como você usa como material? Deixa claro as referências?

Os 66 excertos de metal barulhento são ultrafragmentados e recebem diversos tipos de tratamento sonoro: distorção, equalização, modulação em anel, outros tipos de modulação, etc. A duração deles é em geral bastante curta, sendo que o menor tipo tem 17mm de segundo, entre 17ms e 0.5s. Seis deles foram escolhidos como excertos referenciais e são um pouco mais longos. O mais longo deles com duração de 18s, ou seja, estes seis são passíveis de identificação. Os outros, me parece impossível. Esses trechos são das bandas mais famosas: Burzum, Deicide, Marduk, Emperor, Dark Throne, Ulver. E aí foram elaboradas sequências desses fragmentos, relacionados à série do Nono.

O segundo tipo de material, que são trechos de Fragmentos de Vermelho tratados com extensão temporal, ou seja, aquelas coisas que duram um ou dois segundos foram expandidas para coisas como um minuto. Na Internacional tem os vocoders.

A organização da peça é toda baseada em uma estrutura do Nono, que respeita os quatro tipos de material, mas as organizações são derivadas de um tratamento serial. Essa peça é bastante estrutural, bastante formal, as coisas são usadas de acordo com o que foi pré-definido pelo pensamento estrutural.

Me lembra Hymnen, sempre me lembrou.

Certamente eu ouvi o Hymnen, mas eu não analisei, não tenho especial apreço. Mas no rascunho da peça tem escrito: “Controle de densidade e ‘serialismo'”, que são coisas que estão bastante presentes, creio que em Hymnen. Outra coisa anotada em concepções é “poliparametrização”.

Em Stockhausen tem todo um discurso sobre a utilização dos hinos.

É. Mas não, na minha não tem nada disso aí.

[fim da entrevista, Mário está cansado e quer ir, já estou ocupando muito de seu tempo!]

***

Notas

Os álbuns os quais as duas músicas pertencem podem ser baixados em http://clinicalarchives.blogspot.com.br/2009/08/ca294-bernardo-barros-henriqu…http://clinicalarchives.blogspot.com.br/2008/07/ca153-henrique-iwao-mrio-del-…

1Referência ao filme Matrix (1999), dos irmãos Wachowski; mais especificamente à trilha sonora, de Don Davis, que figuraria “acordes similares” ao d clímax de Gruppen, de Stockhausen.

2Referência a Stockhausen, Karlheinz et al. “Stockhausen Vs. the ‘Technocrats”. Publicado na antologia Audio Culture: Readings in Modern Music; COX, C.; WARNER, D. (Eds). Nova York: Continuum, 2004. p. 381-385.

postado em 9 de junho de 2012, categoria Uncategorized : , , , , ,

Para Giacinto Scelsi, Uma Entrevista com Jean-Pierre Caron

Por Henrique Iwao, 09 de abril de 2012. Realizada através de sistema de conversa via internet, com Iwao em São Paulo e Caron em Paris.

Olá Jean-Pierre. Estou interessado em conversar com você sobre sua obra Momentum I (para Giacinto Scelsi II). A versão que tomo como referência é a redução estéreo, de 2011, disponibilizada no endereço http://soundcloud.com/j-p-caron/momentum-i-for-giacinto-scelsi (incrustrada logo acima desse parágrafo). Mas esta peça foi composta antes, não?

Sim, foi composta bem antes. Conheceu várias versões. Esta que está disponibilizada no meu soundcloud é apenas a sua forma atual. A última que foi produzida, em Agosto de 2011. A primeira, se me lembro bem, é de 2008. E foi apresentada pela primeira vez em um concerto solo que fiz no Ibrasotope1 em Novembro daquele ano. Se eu não estiver enganado. E era bem, bem mais longa.

Sério? Não me lembro disso.

Meu programa em 2008 consistiu em Momentum, que se chamava somente para Giacinto Scelsi II; e Curtos Circuitos I, que toquei na edícula da casa/sede. Eu quis incluir Harmonic Fields Forever, mas na época o piano não ficava na sala. Meu plano incluía projetar o vídeo2, replicando os movimentos do mesmo; mas o piano, ficando na edícula – ia ficar difícil de implementar a ideia, e desisti. Eu pretendia usar esse vídeo e tocar por cima a parte de piano, e talvez convidar o Mário para tocar guitarra.

Pena que não deu certo. Voltando a Momentum, você pode falar um pouco sobre a peça? O que te motivou?

Várias coisas. Mas acho que o que mais chama a atenção a partir do título é a relação com a obra de Scelsi, certo? Eu tinha feito uma dissertação de mestrado em música na Unirio, antes de ir para a filosofia, na qual abordava tempo e espaço musicais a partir de obras de Scelsi e La Monte Young. Sempre fui muito sensível a este tema do Tempo musical, desde a primeira obra que considero importante das que eu fiz, justamente, Curtos Circuitos I.

Sim. Uma concepção expandida do Tempo musical, um tempo que se esgarça.

Sim, mas não somente isso. Na dissertação eu abordava vários tipos de tempos. Entretanto, é fato que o chamado “Tempo vertical” era muito interessante para mim, por não compreender direito como ele funcionava. Como podia ocorrer um tempo não evolutivo, como que parado, contradizendo aquilo que parecia ser a essência do tempo: a sucessão de eventos?

Isso que você chama de “Tempo vertical”, esse tempo não evolutivo?

Sim. Tempo vertical é uma categoria elaborada pelo Jonathan Kramer, em seu livro “The Time of Music”, que eu estudei no tempo daquela dissertação. Hoje tenho inúmeras críticas a esse trabalho, mas continuo achando útil esse termo “Tempo vertical” para denotar certas experiências de tempo.

E qual a relação deste Tempo para com a obra de Scelsi, na sua concepção?

Sim, essa era a pergunta da dissertação.

Você pode resumi-la?

Ela começava apresentando concepções de tempo teoricamente, também havia uma parte sobre espaço, dividia em “pansonoridade”- o sistema do Wyschnegradsky; e “monotonia” ou “afinação justa”- o sistema colocado em circulação no sec. XX por Harry Partch. E na segunda parte eu analisava propostas de dois compositores, Scelsi e Young, tentando articular esses tempos e espaços nessas análises.

O interesse aqui é saber a relação desta concepção de tempo com o fato de você ter homenageado, de certa forma, Scelsi em duas das suas obras.

Sim. O que eu percebi na dissertação foi justamente que a categoria de Tempo Vertical não era adequada à obra de Scelsi, apesar de a mesma não se submeter facilmente a uma análise teleológica. E, para entender isso, fazia-se necessário um estudo das características espaciais das obras de Scelsi.

Em Momentum escuto claramente um direcionamento, um começo, meio e fim.

Sim, há claramente um direcionamento. E isso acontece muito em Scelsi. O que acontece na obra dele são dois fatores: espaço sonoro reduzido – como o nível de mudanças é mais estreito; digo o espaço onde elas ocorrem, isso gera impressão de stasis temporal. E a falta de sinalizadores, como o Paulo Dantas chama, ou de indexicais, como eu chamo: momentos de ruptura na forma que indiquem pontos estáveis de referência em uma evolução.

Mas ao mesmo tempo, essa stasis era ilusória, e havia uma evolução contínua. Ela apenas era dificilmente apreendida de momento a momento. É um tipo de forma cuja evolução fica clara depois que ela acabou.

Ela traça arcos, trajetórias.

Sim.

Mas, por vezes, são trajetos pequenos, ou cheios de pequenas curvas internas.

Sim. Por vezes há mesmo muita movimentação, mas pelo espaço ser estreito tem-se a impressão de uma interioridade sendo revelada em vez dos largos intervalos encontrados na música serial, por exemplo. Essas características me fizeram gerar uma série de obras-comentários, nas quais procurei testar estes elementos de diversas maneiras. A primeira dessas obras foi 8′ para Giacinto Scelsi, que seria Para Giacinto Scelsi I.

Você pode falar muito brevemente dessa peça, para situa-la em relação à outra?

Sim. Esta peça cruza duas preocupações minhas, que são a obra aberta – ainda que se conteste essa noção, posso tomá-la como um termo que abarque uma temática que eu trabalho – e o tempo-espaço musical. A partitura é formada, literalmente, por linhas trajetórias desenhadas dentro de espaços delimitados. A ideia é que cada músico associe uma das linhas propostas a um parâmetro musical. Altura e dinâmica são obrigatórias. O restante é à escolha dos músicos.

Para a leitura das alturas, há alguns critérios pré-compostos: cada espaço de leitura das linhas não ultrapassa o intervalo de dois tons – um acima e um abaixo de um ponto central. Ou seja, o resultado que se tem é uma obra inteiramente composta de glissandi, mas desenvolvidos em espaços muito estreitos de um tom acima ou abaixo da nota. A minha ideia era recriar as texturas da música de Scelsi em um dispositivo que gerasse vários resultados sonoros. Uma maquininha de gerar espaços-tempos scelsianos.

Momentum tem um aspecto importante para mim, nessa relação intermusical com a obra de Scelsi. Parece que essa noção de interioridade se relaciona com um dimensionamento da escuta. Redimensionar a escuta para que a percepção trabalhe em intervalos menores no âmbito das frequências, e em um tipo de duração onde a continuidade é priorizada e a ruptura colocada em segundo plano.

Sim, isso é muito importante e está presente também em 8′ para Giacinto Scelsi.

Você acha que nas suas homenagens esta estratégia de mudar o âmbito musical faz com que a percepção, a escuta, mude de âmbito também? Primeiro: como isso se dá na primeira homenagem?

Eu acho que sim. Não teria argumentos científicos para comprovar isto.

[risos] Não estou pedindo isso, de modo algum!

Mas, por experiência, a escuta destas obras muito reducionistas ocasiona um redimensionamento da percepção; coisas muito pequenas ficam muito grandes.

Muito grandes para a percepção.

E, inversamente, em ambientes de muita movimentação, coisas grandes ficam menores. Um efeito “Alice”3. [risos]

No vocabulário mais cotidiano, uma mudança de ponto de vista.

Sim.

Algo análogo a isso, ao menos.

Uma mudança de aspecto. Existe, ainda, uma terceira obra, ou dispositivo, juntamente com as duas homenagens admitidas a Scelsi.

Certo, mas vamos focar nelas, por enquanto. Logo mais comentamos a outra.

Sim. Mas para focar em Momentum vou precisar comentar 8².

Então, na primeira homenagem, há essa estratégia de diminuição de âmbito de parâmetros musicais deixados ao livre arbítrio, dentro de certas regras, para os instrumentistas. E em Momentum? Qual a estratégia?

Momentum é uma peça acusmática em sua forma atual. Ou seja, ela é gravada em suporte e difundida por alto-falantes. Não há interpretação, no sentido de performance musical. O que ocorreu, para expor um pouco a cadeia de pensamentos que me fez chegar a ela, foi que eu havia feito 8′ para Scelsi e ela era uma obra bastante curta, com seus oito minutos indicados no título. A hipótese que me acometeu foi: se eu multiplicar todos os tempos da obra, será que isso geraria uma qualidade de tempo diferente? O que eu procurava era a resposta negativa, na medida em que a ausência de indexicais destruiria a sensação de tempo diferente gerada por uma multiplicação das estruturas.

A ideia que eu tinha era de fazer isso literalmente, na medida do possível.

‪Não entendi muito. Você esperava que, multiplicando o tempo, dado o aspecto contínuo da obra, ela continuasse com o mesmo sentido de continuidade?

Sim.

E o que seria essa multiplicação?

Seria um processo de time-stretch [expansão temporal]. Na época comecei a pesquisar as possibilidades técnicas de realizar isto.E eu estava tendo aulas na UFRJ com o Rodolfo Caesar. Durante uma aula mencionei o projeto a ele, e ele me deu um patch [programa computacional] que ele havia feito no Csound para, um time-stretch também. No caso dele, de uma obra de Bach. Disse que eu o utilizasse no meu projeto, e foi o que eu fiz.

Fuga III de Bach/Busoni/Caesar?

Exato. Claro que estudei o a programação do Rodolfo e adaptei para as minhas necessidades. O que se ouve em 8² e em Momentum, apesar de saído do mesmo esqueleto, da mesma armação, não são os mesmos valores. Bem, preciso esclarecer o que é 8².

8² é a obra resultante da aplicação do time-stretch a 8′.

Deixando-a 8 vezes mais lenta.

Exato. Eu quis aplicar o procedimento literalmente e dei um título literal. Ela foi estreou no Ibrasotope também, no Festival do final de 2008, como instalação.

O título indica uma coisa curiosa, ao meu ver: que a preocupação principal das duas era a percepção do “passar do tempo”. Só com o título da primeira eu não faria essa relação. A segunda peça, com essa brincadeira com a multiplicação do tempo (82), diz no título exatamente para prestarmos atenção na passagem do tempo. E então é como se aqueles intervalos mais restritos da primeira fossem de alguma forma relacionados com uma mudança da apreensão do Tempo. Isto é, não só um redimensionamento da percepção para âmbitos menores. Enfim, tinha esta impressão. Se puder formular melhor que eu, agradeço.

Sim, eu entendo o que você quer dizer. Eu acho que o índice “²” mostra a passagem do tempo. Porque, em 8′, o que “8” diz? Uma fatia temporal espacializada. “Você vai ouvir um pedaço de 8 minutos”. Na segunda obra, em vez de chamar de 64 minutos, o que seria a mesma operação, eu chamei de 8², explicitando que havia uma transformação de uma outra coisa. Que era uma fatia de 8 minutos originalmente.

E que a base de comparação era o “passar do tempo”. E aí temos de escutar de novo a 8′ sob uma nova luz, comparando as temporalidades. É muito bem bolado o fato do título conter o conceito.

Sim. No final das contas não existe 8² enquanto obra. Estas “obras” não possuem existência substancial. São procedimentos. 8′ para Giacinto Sscelsi é um procedimento para gerar uma performance, e 8² é um procedimento a ser aplicado sobre performances de 8′ para Giacinto Scelsi. Ou seja, não existe UMA 8².

Tenho pensado nesta categoria de obras como obras-dispositivos. É um dispositivo, no sentido de algo que se conjuga a algo fazendo algo. Eu posso gerar tantas 8² quanto eu quiser, inclusive não obedecendo à proporcionalidade do título.

Qual foi sua conclusão sobre essa comparação de temporalidades musicais?

Eu acho que eu confirmei a minha hipótese, para a minha escuta. Há variações grandes entre 8′ e 8², mas nenhuma para mim se traduz como mudança de natureza do tempo. Dentro do que poderia ser uma “tipologia do tempo e do espaço musicais”, estas duas obras estariam na mesma categoria. Apesar de todas as transformações timbrísticas, de densidade, entre elas.

Ou seja, sua categoria teórica se confirmou na sua experiência?

Não posso ir tão longe, porque acho as categorias falhas, por outras razões. Mas a hipótese empírica sim, para os meus ouvidos se confirmou. Eu ainda acho essa hipótese um tanto teórica, mas isso é apenas uma querela teórica. Acho melhor não entrarmos nisso.

Quero dizer, não é importante se a categoria “Tempo vertical” se sustenta ou não como categoria teórica. O que era importante era verificar se havia mudança de categoria entre as duas dimensões representadas nas obras… (É, eu fui guiado por perspectivas muito teóricas).

Entendi. E como isso desemboca em Momentum?

Em Momentum existe uma diferença muito grande em relação às obras anteriores. A operação foi muito simples: eu apenas pensei em, em vez de aplicar o time-stretch a um produto que eu tivesse produzido, por que não aplicá-lo diretamente a uma obra de Scelsi? Mas escolhi para tanto, intencionalmente, um sample inicial muito direcional. Com todas as características que elenquei anteriormente, mas no qual existia de fato uma mudança de estado entre o momento inicial e o momento final do sample.

‪Um indexical?

Não tanto indexicais, os indexicais da peça foram criados por mim. Por meio de corte e cola de outros fragmentos não passados pelo time-stretch. O que ilustra também esta indiferença de escalas temporais dependendo do material de base. Os momentos não ampliados se inserem de forma bastante contínua nos momentos ampliados. Mas existe uma diferença de timbre que acho que pode se converter num idexical, num sinalizador.

Eu indentifico vários momentos que servem como referências para localizar temporalmente a escuta, durante a obra, mesmo que o movimento como um todo seja um contínuo, em geral.

Sim, estas foram acrescentadas ao processo depois do time-stretch efetivado. Na versão inical de 2008, se me lembro bem, não havia estes sinalizadores. Era liso. Mas tinha um claro direcionamento.

Era mais liso, de fato.

Sim, isto sempre esteve presente, por conta do sample original, que foi escolhido com estas propriedades de direcionalidade, dramaticidade, clímax. O título revela esta vontade. Momentum como falso cognato de “momento” e também como impulso. Essa duplicidade temporal de algo lento, que demora pra mudar. Ao mesmo tempo está sempre mudando. Além de brincar com a tendência de se colocar nomes em latim em obras eletroacústicas. [risos]

‪Começa pianíssimo e rarefeito, adensa, cresce em intensidade, se esvai e aí sobra algo de diferente, um som mais leve, advindo provavelmente de um solo. É um arco, mas bastante pronunciado.

Por incrível que pareça eu me lembro da análise de Tender is the Night, creio que do Deleuze / Guattari4.

Do Fitzgerald?

Isso. Ele fala de microrrupturas5. As coisas vão mudando lentamente. Mas quando vem a percepção da mudança, ela pode se dar de forma a gerar um momento, algum indexical. Provavelmente gera essa tendência; no caso da novela, alguns acontecimentos entre o casal, que vai aos poucos se juntando e se separando.

Sim. Brilhante, bem como a vida.

É um livro impressionante, o Tender is the Night6. É curioso eu fazer a relação disso com o final da sua peça, mas é uma relação vaga.

Claro. O que ocorre, vamos contar, para quem não conhece, é que existe um processo contínuo bem simples de crescendo. E, paralelamente, existem outros processos. Existe uma compressão que vai alterando o timbre em dois dos canais, tornando-os mais ruidosos. E existe um glissando de um synth dx 100 super grave que se mistura gradualmente ao som das cordas em time-stretch, um glissando ascendente. O ponto máximo desse glissando coincide com o ponto superior da peça, no sentido da condução de vozes. O Paulo [Dantas] sabe exatamente a nota que é. Eu, que compus, não sei. Pergunte a ele depois. [risos]

E no final é como se a maquina quebrasse. Existe um som mais grave, com muita movimentação interna, e muito intenso, que termina em um ataque que abre um outro mundo: o som do quarteto de cordas não processado, nos últimos minutos da peça. É interessante pensar no paradoxo de o quarteto não processado soar mais micro do que o som esgarçado por conta de uma associação com as dinâmicas. O quarteto aparece muito baixinho, como uma lembrança, apenas, em fade out.

O final é um quarteto?

Sim. Não digo qual, mas é um quarteto. Prêmio para quem descobrir!

Essas inserções, a não ser as sintetizadas, são de obras de Scelsi? Todas?

Sim, são de obras orquestrais. Fora as coisas que eu mesmo produzi com síntese.

E o final não tem time-strecth então?

Não, tem só depois do último ataque brutal. Os últimos segundos não têm time-stretch.

‪Curioso!

Mas foi uma colagem, mais uma. Eu fui sobrepondo outros trechos, ao longo da peça, à camada esgarçada, movido por coincidências harmônicas e de trajetórias. O espaço no qual estas intervenções aparecem também é sempre diferente.

Mantendo a forma pré-dada pela amostra utilizada?

Mais ou menos. A versão de 2008 mantinha integralmente; em 2009 apresentei a peça já com o título de Momentum, no Encun de Minas Gerais. Nesta versão já tinha feito um corte na amostra original e refeito o procedimento.

Entendi, então o título indica essa mudança de concepção mesmo, reforçando e brincando com passagens em que era possível traçar essas referências.

SIm, eu assumo a direcionalidade com o título. Aliás, apresentei no Ibrasotope na semana seguinte esta mesma versão. Ainda não morava com vocês. Fui de Minas Gerais para São Paulo direto apresentá-la em um dos concertos mensais. Existiu ainda uma versão intermediária, apresentada no RIo de Janeiro em 2009 antes do Encun. Mas durava 18 minutos, contra os 14 da versão atual. E a versão do Ibrasotope em 2008 durava mais de 25, se não me engano.

Certo. Então teve alguma hora que você mudou a concepção da peça?

Sim, acho que sim.

Na primeira versão você procurou comparar a sua obra com a de Scelsi como um experimento? Assim como 8′ e 8²?

Sim. A primeira versão era também uma aplicação literal de um procedimento. Depois assumi a existência de Momentum como obra fixa. Neste sentido acho-a bastante diferente de 8′ e 8². Momentum existe com aqueles sons, naquela ordem.

Mas e a relação desse time-stretch para com a obra original?

Ele não era fixo como em 8². Os valores mudavam ao longo da leitura da amostra. A quantidade de novas amostras produzidas não era fixa, de tal forma que a taxa de ampliação, por assim dizer, é variada.

Você procurou comparar a percepção das temporalidades?

Sim. Momentum está mais próxima de temporalidades de outras obras minhas, como a citada Curtos Circuitos I, nas quais há direcionalidade e clímax. Porém chega-se lá bem lentamente. Isto exige uma paciência do ouvinte e do intérprete, que entende que algo está por vir mas que precisa esperar até que este algo chegue.

Mais do que da obra de Scelsi?

Não sei se há mais, mas para a minha escuta, esta lentificação potencializa a dramaticidade. E é como se os processos temporais ultrapassassem o que o ouvido normal considera cômodo.

Certo, o que eu queria sublinhar é a passagem entre o experimento de 8² e Momentum. Você usar esse tipo de procedimento, já modificado, em cima de algo pré-formado de uma gravação de obra do Scelsi…

Sim, a amostra foi escolhida para isto.

Por exemplo, a obra de Caesar lida com essa mudança de velocidade; mas lá claramente há a vontade de mudar de perspectiva, o que se escuta, de evidenciar timbres, e os espaços sonoros que se mostram à percepção através de nuances de timbre e fase sonora.

Sim, os critérios que orientam a obra do Rodolfo são bem diferentes dos meus. Embora evidentemente a minha obra possua influência do que ele realizou.

Então, houve alguma estratégia mais clara, relacionada a um possível comentário sobre a produção musical de Scelsi?

Não, não houve. Foi menos intelectual do que as duas obras anteriores. O que houve foi: esse cara chega a um clímax em x minutos. E se eu pegar esse processo e fazer um processo bem maior e chegar nesse clímax em bem mais tempo?

A pergunta é diferente, no sentido de que eu de saída estava lidando com direção, mas orientado pela vontade de gerar intensidade. Existe aí uma relação com minha prática Noise, no -notyesus>.

Sim. E houve alguma pergunta do tipo: “por que usar a música desse cara como base”?

Sim, porque era um material que me agradava e que eu achava que ficaria bom. Só por isso.

Eu tenho uma ideia um pouco diferente dessa motivação. [risos]

Diga então qual é a sua ideia.

Eu sempre achei que você via no Scelsi, através dessa obra, um precursor do gênero Noise.

Sim, você está certo. Mas não foi muito consciente. Acho que a minha resposta é mais verdadeira pelo seguinte: eu gosto de Scelsi e gosto de Noise. Usei algo que eu gostava. E, fatalmente, à medida que a obra avança, ela sai de texturas bem artificiais, estilo eletroacústico, para texturas orquestrais, para sons muito saturados no final, encontrando-se sim com uma prática noise. O sinal nos canais com compressor fica absolutamente clipado no final. Eu abaixei depois, para mixar com os canais sem compressor. Esse é o tipo de coisa que eu e Sarpa fazemos no -notyesus>, usar coisas erradas como efeito timbrístico. E é muito típico de uma prática Noise, embora não exclusivamente.

O bacana é que, mesmo que inconscientemente, passa algo de também reavaliar a obra do Scelsi como algo passível de estar mais próxima das músicas Noise. Para mim, ao menos.

E quando o título mudou, o que exatamente foi feito, você lembra de um exemplo que ilustre essa mudança?

Sim, eu fiz o primeiro corte na duração da peça no intuito de tornar a forma aerodinâmica. Cheguei a 18 minutos, apresentei assim na Unirio, no Plano B, em Agosto de 2009, época em que apresentei também o Ícone, nos mesmos eventos, com os músicos do Ensemble Agora: Sarpa, Paulo e Marcos Campello. Cortei mais na manhã do concerto em Minas gerais, cheguei a 14 minutos. Eu queria chegar sem atrito ao clímax. Cortei alguns sinalizadores para acrescentar outros. Ela foi ficando cada vez mais com a forma de um crescendo. E aquele quarteto, que gerou toda aquela massa sonora e todas aquelas comunicações entre gêneros musicais, aparece a descoberto, em fade out.

Gostaria de terminar com uma pergunta a mais. Você falou em perceber a temporalidade e em lidar com o tempo, com o esgarçamento do tempo, com a criação de uma espera. Você conseguiria dizer um pouco o que para você é essa percepção de temporalidade, quando você escuta? Para a sua experiência, dá para colocar em algumas palavras? Ou é mais um tipo específico de sentimento?

Sim, sou movido por sensações nesse quesito. É um pouco difícil dizer o que é. Acho que lida com problemas muito difíceis de inadequação da linguagem à experiência. Não sei o que dizer a respeito.

Certo! Bom, foi um prazer.

Igualmente.

 

Notas

1Núcleo de música experimental; contou com uma sede em São Paulo em que foram realizados diversos eventos e concertos, entre dezembro de 2007 e abril de 2012.

2O vídeo referido, realizado por Bruno Agra, pode ser visto em , acessado em abril de 2012.

3Referência ao episódio de “Alice no País das Maravilhas”, romance de Lewis Carroll, em que Alice se depara com um vidro com a mensagem “beba-me” e com um bolo com a mensagem “coma-me”.

4A referência é, na verdade, ao tópico Segunda Novela: “The Crack Up”, Fitzgerald, 1936 (tr. fr. Gallimard), do capítulo 8 do livro “Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Esse tópico, entretanto, não analisa Tender is the Night.

5Deleuze e Guattari falam de microfissuras e fissuras, por um lado, e de rupturas, por outro. Microrupturas refere-se a microfissuras.

6Em português, Suave É a Noite, escrito em 1934, por F. Scott Fitzgerald.

 


postado em 19 de maio de 2012, categoria Uncategorized : , , , ,

Reimaginando Mahler, Entrevista com Alexandre Fenerich

Por Henrique Iwao, 23 de março de 2012. Realizada através de sistema de conversa via internet, com Iwao em Campinas e Fenerich em Juiz de Fora.

Iwao: Olá Alexandre, tudo bom?

Fenerich: Oi Henrique Iwao. Vou bem e o senhor?

Iwao: Vou Bem. Eu gostaria de começar pedindo para você falar um pouco sobre sua relação para com as obras do compositor Gustav Mahler. Você compôs o Étude D’après Mahler (“estudo posterior à Mahler”) totalmente em cima de uma obra dele, mas não é a única aparição das músicas desse compositor na sua obra, certo?

Fenerich: Não é, de fato; o primeiro movimento da primeira sinfonia foi usado, tanto no Étude, quanto no Surfing in Turntables.

Para mim Mahler é o último grande compositor romântico, e um precursor da paisagem sonora. No fundo as concepções de Murray Schafer1 e Mahler sobre a natureza são parecidas:

um lugar ideal, que se perdeu com a civilização; um lugar idílico. O inicio do primeiro movimento da primeira sinfonia tem essa ideia. Quer dizer, eu gosto de saber que a representação de um som da alvorada na floresta é tocada por uma orquestra romântica e fixada num disco de vinil; a orquestra e o vinil são objetos máximos da cultura ocidental e industrializada. É a síntese de uma nostalgia, e brincar com isso é a ideia do Étude (ele tem um nome clássico: como um estudo de Chopin).

Iwao: certo, e esse pedal em lá agudo, tocada pelos violinos no início da sinfonia seria o som de fundo, da natureza…

Fenerich: exato. Isso esta escrito na partitura2.

Iwao: como os grilos?

Fenerich: sim, como uma certa névoa também. O pedal agudo de Mahler deve ser pianissíssimo e nesse sentido prenuncia as experiencias de quase silencio do compositor Luigi Nono, mas também de Morton Feldman, etc. E em pianssíssimo a gente ouve mais o ruido do suporte que qualquer outra coisa.

Iwao: o ruído do toca-discos, você diz, no caso de ouvir a sinfonia gravado em um vinil?

Fenerich: sim.

Iwao: ouvir o meio, a mídia se manifestando.

Fenerich: exato, é pianíssimo demais esse começo. Na vitrola isso faz com que prestemos atenção nos ruídos que a vitrola produz.

Iwao: certo, e daí há uma ponte, através do Mahler via vinil, até Schaeffer “o manipulador de vinis”? Quer dizer, você pensou em algo assim? As primeiras obras de Schaeffer também eram “études”…

Fenerich: sim, o nome faz referência também a Schaeffer. É, na verdade, um estudo de suporte: vinil, várias gravações (há duas ali), registro em midi… Eu acabei editando muito o andamento das camadas em midi nessa música. Essas edições colavam-se no material gravado. É um estudo de escuta, de ironia, de contracantos.

São contracantos com o mesmo “material composicional” mas que, em suportes tão distintos quanto o midi e a gravação em vinil de uma performance de orquestra, tornam-se realmente materiais distintos, mundos opostos, de modo a serem canto e contracanto, materiais contrapontísticos.

Iwao: Tanto usando midi quanto a reprodução em vitrola, é a mesma obra de Mahler a ser executada, mas quando ouço o midi, parece ironia – por ter um timbre simples e eletrônico; como se você tirasse sarro dessa escuta que prioriza a nota acima de tudo.

Fenerich: mas são estritamente a mesma coisa – ambas as camadas são baseadas na partitura original, estritamente, e o nome dos instrumentos midi são: flauta, clarinete, etc, assim como o nome das partes da orquestra…

Embora saibamos que Mahler jamais pensou numa “flauta” eletrônica, ambas (a flauta eletrônica e a flauta de orquestra) possuem o mesmo nome; uma é espelho da outra.

Iwao: então você pensou como uma contraposição de meios mesmo.

Fenerich: sim, num primeiro momento. Há aquele fundo anterior: a questão da escuta em pianíssimo e a aproximação de um idílio com a natureza.

Num segundo momento, essa coisa com os meios; depois, manipulação mais estrita mesmo.

Iwao: tá. Deixa eu te dizer um pouco mais sobre os sons “midi” que aparecem: não dá para não rir quando entra um toque de chamada (“ré-lá”) com o timbre “midi” (embora midi seja um protocolo,, acostumamos chamar os sons produzidos, via esse protocolo, em computadores do início da década de 90, de som “midi”). Lembro da placa “Soundblaster.”

Fenerich: o “timbre midi” ali foi de fato caricaturizado: usei o pior banco de sons possível, “Soundblaster Microsoft.”

Iwao: hahaha. Esse mesmo. Bem que reconheci!!!

Fenerich: a ideia era contrapor realmente a super gravação que eu dispunha: a da orquestra do Concertgebouw de Amsterdã, a mesma orquestra que, se não em engano, estreou a peça3, ou seja, uma gravação legitimada…

Iwao: entendi. Contrapor uma gravação mais-do-que legitimada por algo absolutamente ilegítimo, a execução “midi”, a ponto de resultar no cômico.

Fenerich: exato. Esse cômico foi um resultado nem sempre esperado, embora previsto (eu não busquei sistematicamente o cômico mas sabia que apareceria).

Iwao: sim, sim. Daí você organizou a coisa pensando no que antes você se referiu como “manipulação mais estrita”? O que seria essa manipulação?

Fenerich: em primeiro lugar sobrepus camadas dos áudios da gravação da orquestra, em diferentes afinações (usei transposição de alturas). Isso gera uma penumbra sonora, que acentua o efeito do inicio da peça.

Iwao: gerando dissonâncias, e mais espessura às sonoridades.

Fenerich: exato.

Iwao: me parece que esse espessamento prepara a entrada de outros materiais. É interessante que você tenha chamado isso penumbra; no escuro, a imaginação corre mais solta…

Fenerich: e depois acrescentei a camada de midi, que aparece como um decalque, então, ritmicamente, deveria ser próximo ao original, mas um pouco deslocado. A palavra penumbra, para mim, tem a ver afinal com o suporte da peça: escuta acusmática.

Iwao: tenho a impressão que se fosse muito “claro”, as manipulações apareceriam demais, e quebrava o aspecto “surrealístico” da escuta.

Fenerich: além disso: adicionei uma outra camada, um sample de uma festa rural do Pará; uma camada de uma festa popular, mais próxima do “natural”, tanto por ser próximo à terra quanto por ter ritmo, dança…

Iwao: ela aparece nos crescendos. Enfim, voltando, você imaginou uma névoa, e a ideia da penumbra é algo próxima da névoa.

Fenerich: talvez…

Iwao: certo. Eu interpreto demais… Bom, queria saber sobre essa festa. Ouvindo, tenho a impressão de que as frases de baixo que aparecem pontuando o ambiente sonoro de certa forma preparam as entradas do som de festa; que há uma fraseologia parecida.

Fenerich: talvez. Era algo que eu escutava na época. Não me lembro exatamente… deveria escutar a peça de novo. Entretanto não foi algo proposital…

Iwao: é bacana porque quando o gesto da festa (os crescendos) aparecem, a peça fica presa nesse movimento, do desenvolvimento dessa gestualidade – o momento da festa.

Fenerich: sim, o Mahler começa a se desenvolver e aí eu colo os sons da festa. Tem fogos de artifício, tem a noção de um movimento/dança. É uma amostra muito bonita… Me parece que de uma festa de uns monges mendicantes do Pará, gravado pelo Fabio Cavalcanti.

Iwao: a peça então vai da alvorada para a festa.

Fenerich: da alvorada para o delírio de uma festa. É uma natureza nostálgica, sabe? Afetivamente. De fato, ela não existe. É uma natureza de gente de cidade.

Iwao: acho curioso a peça ser tão condensada. Você tem grilos e cordas soando na região aguda e desde o início a coisa já vai progredindo, entrando metais, etc. Não dá tempo de dizer: “olha a natureza, que tranquilo”.

Fenerich: saquei. É realmente condensado.

Iwao: no final volta para o começo, mas com a camada midi a todo volume; é uma boa forma: esse midi quebra o aspecto de sonho e penumbra. Ele é claro demais! Ré-lá.

Fenerich: sim, cai um pouco no cômico.

Iwao: e como é isso de voltar para a mesma sinfonia, o mesmo movimento, seis anos depois. Falamos até agora sobre o Étude D’après Mahler. Mas e Surfing in Turntables, seis anos depois. Foi em 2004 o Étude e em 2010 o Surfing, certo? É algo obsessivo seu, em relação a essa sinfonia?

Fenerich: é isso, as datas; Surfing in Turntables4 é de 2010, e tem a mesma coisa, mas totalmente em outro contexto. A coisa se deu ao acaso: eu achei 6 discos iguais dessa sinfonia numa loja.

Iwao: Titã5?

Fenerich: exatamente.

Iwao: com a foto de um sol nascente na capa?

Fenerich: não… Um Klimt6, uma gravação da editora abril, bem ruim. O fato é que achei essa sinfonia em 6 discos iguais… De repente aquilo que eu fiz num ambiente em tempo diferido, dava para fazer ao vivo. Essa é a lógica dessa retomada (quase a mesma obra: eu gosto dessas maluquices – 1 obra e 2 nomes com 2 meios ou várias obras com o mesmo nome).

Iwao: eu sei que tu gostas; e de confusões também… Mas então a idéia era trabalhar a criação das diferentes “penumbras”, ao vivo?

Fenerich: exato, e as inserções de mundos diferentes, mas agora visualmente: vídeos retirados de um filme de Alfred Hitchcock.

Iwao: existe alguma conexão mais clara entre o movimento do Mahler e as obras de Hitchcock? Qual filme foi usado?

Fenerich: a única conexão é o aspecto de música orquestral do filme (e da música de Mahler). O filme em questão é “um homem que sabia demais”7. Na performance de Surfing a gente (o Duo N-1: eu e Giuliano Obici) chegamos no mesmo clímax: eu em um clímax sonoro, ele em um visual; daí a performance “congela”.

Iwao: a sugestão acerca do filme foi feita por Giuliano?

Fenerich: não, essa peça eu a concebi. O Giu bolou as soluções visuais. Ele gerou a interface de vídeo e também participa da performance da peça.

Iwao: o Hitchcock surgiu depois então? Digo, após a idéia de fazer as montagens de Mahler ao vivo.

Fenerich: na verdade são duas peças em uma… Duas idéias (penumbra + brincadeira com o ápice/clímax). E tem a manipulação ao vivo do suporte produzindo ruídos em pianíssimo, como em Étude (o pianíssimo da alvorada do Mahler, mas agora como zumbidos de disco, tanto em Étude quanto em Surfing).

Iwao: isso é bacana, porque, de certo modo, as imagens suscitadas pelo Étude e por Surfing são bem distintas uma das outras, mas a estrutura é parecida, além de usarem a mesma obra como material composicional. Na primeira a imagem é explicitada no som (“natureza”), enquanto na segunda, pelo através do vídeo (“intriga/assassinato”).

Fenerich: são peças de performance de mídias, uma em tempo diferido, outra em direto. Na segunda não há uma imagem acusmática, construída pelo som: tudo ali é a representação do gesto. Há câmeras que filmam nossas mãos e essas imagens são projetadas, em meio a inserções do filme.

No Étude é a imagem ambígua trazida pelo som da fonte, das representações da natureza, da ambiguidade dos ruídos. Na performance de Surfing tudo é mais declarado e claro.

Iwao: sim, por isso na gravação do enemenosvídeo, do álbum musical virtual, tirando a parte de vídeo, a imagem mental que resulta da escuta sem vídeo é dos toca discos sendo manipulados e não de uma trama de assassinato, “hitchcockiana”.

Fenerich: é ainda uma terceira experiência, pois no Étude a manipulação não aparece. Aparece a manipulação mental, digamos… composicional, mas não a manipulação material, do gesto.

Iwao: sim, os mecanismos estão mais bem escondidos. Ao vivo, na performance de Surfing estão escancarados, ou melhor: eles são escancarados.

Fenerich: você me deu a idéia de sobrepor essas três versões.

Iwao: hahahahahaha.

Fenerich: então: a versão do Surfing acusmática8, a do álbum, é um registro de performance (na verdade não é: é uma composição em 6 camadas de performance, mas é como se fosse um registro).

Iwao: sei, é a idéia que se tem em estúdio do que seria uma performance, tal qual uma banda de rock, por exemplo, faria.

Fenerich: sim!

Iwao: o que eu acho bacana é que sem o vídeo, as vitrolas aparecem em primeiro plano

Fenerich: sim, foram bem gravadas, afinal…

Iwao: mas assim como no midi do Étude, tem um certo exagero do meio (da mídia) se manifestando: muito barulho de fundo, muito ruído. As vitrolas são um meio bem pouco transparente!

Fenerich: talvez seja um preço em querer expor as mídias: ainda não achei um certo equilíbrio entre essa brincadeira e esse exagero no final das contas.

Iwao: acho que é uma escolha desse momento. A qualquer momento tu podes querer comprar um toca discos decente, ao invés de chiques maletinhas-toca-discos.

Fenerich: não sei, me parece que daí (se eu passar a usar um toca-discos profissional) o meio se esconderá. Ainda nao sei resolver isso… Talvez o exagero apareça por uma vontade de enfatiza-lo.

Enfatizar é legal: é uma marca, um estilo, etc. Mas o exagero cansa. Tentar equilibrar? Talvez… Não sei.

Para ouvir a versão sem vídeo de Surfing in Turntables, descarregue o álbum virtual enemenosvídeo aqui: http://www.limiares.com.br/duo-n1.html

1 Compositor, escritor e educador canadense, conhecido pela sua preocupação com ecologia acústica e pelo seu World Soundscape Project, algo como “projeto da paisagem sonora mundial”.

2 “Wie ein Naturlaut”.

3 Na verdade a obra foi estreada, com regência do próprio compositor, em Budapeste, em 1889.

4 Como é comum ao grupo (Duo N-1), há incongruências dos próprios integrantes quanto ao nome correto da obra, que ora aparece como Surfing in Turntables ora como Surfing on Turntables, como é o caso do registro em vídeo na página de internet de Giuliano Obici: http://giulianobici.com/n-1/surfing.html.

5 “Titan”, como ficou conhecida a primeira sinfonia de Gustav Mahler.

6 Uma pintura de Gustav Klimt.

7 O Homem que Sabia Demais, de 1956.

8 Primeira faixa do álbum virtual do Duo N-1, Duo N-1 (também chamado de enemenosvídeo).


postado em 19 de abril de 2012, categoria Uncategorized : , , , , , , ,

Entrevista com Mário Del Nunzio, sobre “O Chá”

31 de março de 2011, 17h, sede do Ibrasotope. Convido Mário para falar sobre sua peça eletroacústica O Chá (2004), à partir de 11 perguntas e uma indagação. Ele lê as perguntas, deixando as de número 1 e 4 para responder por último. Antes de tudo, resmunga baixinho “assim, estamos falando de uma peça composta 7 ou 6 anos atrás…”. 

2. Como foram escolhidas as amostras que você utilizou para a composição?

Os CDs que estavam próximos, no dia em que compus a peça. Eu puxei de 30 a 40 ou 60 CDs da minha estante, não me lembro bem exatamente quantos. De cada um deles eu peguei um pequeno trecho de 1 ou 2 segundos de uma das faixas, sem aparente critério.

3. Existe algo que sinalize ou implique a idéia de “coleção” na escolha desse material / das amostras?

A coleção dos meus CDs, ou dos CDs que eu tinha em Campinas, na época, no apartamento no qual a peça foi composta.

5. Como se dá o encadeamento das amostras? Quais procedimentos foram utilizados, e com que finalidade?

Se não me engano,  a medida que as transferia para o computador, numerei as amostras. O encadeamento se dá de acordo com alguma estrutura, relacionada a essa numeração. A proveniência delas é em alguma medida neutralizada, no sentido de que, ao lidar com um material, não tenho a necessidade / vontade / capacidade de saber de onde ele veio. As amostras foram justapostas*, gerando a primeira seção da peça, que foi utilizada como material para o resto da peça. Creio que cada amostra tinha um ajuste de equalização e de panorâmico (sempre passando de um lado para o outro, em um processo gradual, do maior intervalo até o menor, de forma ao resultado ficar cada vez mais centralizado).. Na sequência de amostras utilizadas, a duração das amostras aumentava algo como que em 1 ms de uma amostra para outra. Não sei o valor inicial, talvez 10 ms…

6. Existe a construção de uma direcionalidade na obra? Existem pontos culminantes? Como essa construção se relaciona com o material composicional utilizado?

Afora essas microdirecionalidades imperceptíveis, não há construção de direcionalidade na obra. Existem seções de caráter relativamente contrastante, que se dão por diferentes processamentos desse material gerado no início.

7. Qual a relação entre a estruturação da peça e as amostras utilizadas?

A estruturação da peça independe, absolutamente, do material que é utilizado. Significa que a estrutura tem um caráter abstrato e que é de certa forma auto-suficiente. Quaisquer que fossem as amostras utilizadas, a diferença de resultado ia ser, aparentemente, irrelevante.

8. Qual a intenção no que concerne a escolha das amostras (em si) e / ou do tipo de amostra (de outras músicas)?

Existem outras peças que eu fiz nessa época na qual existe a utilização de material proveniente da mesma “coleção”, ou seja, dos CDs à disposição no momento, na qual a relação com o material é completamente diferente. Por exemplo, em Improviso em Branco & Preto (Carta às Videntes), a escolha do material é causal. Ou seja, não poderia haver nenhuma substituição, porque isso alteraria gravemente o resultado final da peça, que lida muito mais com a questão de uma construção gestual, de análise de características sonoras, etc – o que absolutamente não se faz presente em O Chá. Afora essa questão da neutralização das amostras utilizadas, já mencionada, de fato não sei se há uma intenção programática. Era só o material disponível, que me pareceu mais proveitoso do que, sei lá, fazer síntese ou o que quer que seja.

9. Como você procurou lidar com a questão referencialidade musical nessa peça?

Eu não lidei com essa questão. Agora, é bem provável de que no momento em que eu compus essa peça, eu tenha feito a lista de todos os excertos utilizados, como mero exercício de catalogação… Se for para falar de referências nessa peça, de fato, provavelmente há uma relação possível com Xenakis, no sentido de eu ter utilizado um processo similar ao utilizado em Concret PH, que é uma peça que na época eu escutei bastante.

10. Qual a relação entre o resultado sonoro da obra e os diversos processos, procedimentos? Entre esse resultado, a estrutura da obra e o material composicional utilizado?

Eu não sei. Planejei um processo. Depois que o executei precisava terminar a peça, existia uma data final, um determinado horário, a coisa tinha de durar um minuto, e eu precisava gerar algo que completasse esse tempo. Esse tempo foi completado através da manipulação do material inicial gerado nesse primeiro processo.

11. Existiu, durante o trabalho composicional dessa obra, alguma preocupação em refletir sobre as tecnologias digitais, o CD especificamente? Se sim, isso se deu de que forma?

Nessa peça não há reflexão alguma, ou sei lá, provavelmente pensei em algo, mas agora não tenho idéia do que.

1. No que compreende o material composicional utilizado em O Chá? O que foi utilizado como material?

Se fôssemos definir de modo clássico (como em Beethoven, Mozart, colocando a questão do “tema”), o material da peça seria o que foi apresentado no início, nos primeiros 8 segundos, que é o resultado da justaposição das amostras, esse seria o material. Esse material depois é transformado; tudo o que se ouve na peça depois disso é diretamente decorrente desse momento inicial. As amostras fornecem conteúdo sonoro para esse material. Agora, é muito difícil eu falar que essas amostras são o material composicional da peça, porque ao meu ver, este está muito mais relacionado ao modo como elas foram encadeadas e à estrutura utilizada para isso.

4. Como se deu o trabalho composicional a partir do material?

Essa pergunta de fato eu não me lembro. Ela está parcialmente respondida nos outros lugares.

* justapostas: colocadas lado a lado, sequencialmente.

SILVEIRA, Henrique Iwao J.; DEL NUNZIO, Mário A. O. Entrevista com Mário Del Nunzio, sobre “O Chá”. 31 de março de 2011.

Baixe o álbum virtual, que contém O Chá, além de mais três peças de Mário Del Nunzio, três de Bernardo Barros e três de Henrique Iwao.

Música Eletrônica 2004, arquivo .zip

Música Eletrônica 2004, página da gravadora Clinical Archives.


postado em 1 de abril de 2011, categoria Uncategorized : , , , ,