Quantidade é Qualidade, uma entrevista com Johannes Kreidler

Realizada por e-mail, entre 18 de abril e 26 de maio de 2012, por Henrique Iwao. Traduzida do inglês para o português.

Sobre Product Placements: seu vídeo documenta bem os aspectos políticos e performáticos da peça. Por isso, minhas perguntas tomarão outra direção: do material musical utilizado e da estruturação da peça. Você disse ter usado 70.200 peças de música – como diz o vídeo: “citações”. Como você escolheu estas 70.200 peças? Como você procedeu para sequenciar essa quantidade imensa de amostras, e como as estruturou?

É claro que não cortei à mão, com tesoura. Programei um programa computacional [patch] que reúne aleatoriamente todos os sons de meu HD. O que eu podia modificar era a densidade rítmica e o envelope. Então escolhi as passagens que eu mais gostava, combinando com alguns trechos feitos à mão, como o som do piano, o som de percussão e a citação ao fim. Montei uma forma com duas ondas [dois arcos] e uma coda.

Sobre seus hábitos de escuta: você disse que estes 70.200 representam a grande quantidade de acessos que arquivos de vídeo e áudio recebem na internet. Pode-se dizer então que a música em seu HD representa também a vastidão do que há disponível para se ouvir na internet?

Sim, as 70.200 citações representam os milhões de peças musicais disponíveis, e os 33 segundos são simbólicos para a compressão, a técnica que torna possível tê-las na internet.

O que você costuma escutar?

Eu tive uma formação de música clássica, mas escuto praticamente de tudo.

Você escuta tudo o que há de música no seu HD? Existe nele algo que você guardou, mas nunca escutou?

Claro que não ouço tudo que tenho no meu HD!

Em alguns momentos essas amostras são partículas sonoras ouvidas como texturas e/ou objetos sonoros. Em outros, elas são amostras de tamanho maior, bastante reconhecíveis: piano, caixa clara, uma nota cadencial grave no piano, um desdobramento cafona de acordes no final. Qual a função que eles têm na peça, tanto simbólica quanto estruturalmente?

Musicalmente funcionam como bordas da forma total e articulam o fluxo. Ademais, eu quis sons que ficassem entre a grande massa de amostras que fossem facilmente reconhecíveis. Daí a questão é se estes sons podem ser considerados citações (me perguntaram se o piano era Beatles), ou se eles contam simplesmente como sons livres…

Essa ambigüidade é muito legal. De um modo, você sempre faz pastiches com sons que não têm o que John Oswald chama de “gancho”: não são individualmente identificáveis. Esta é uma coisa que difere a sua estética da do plunderphonics [pilhagem sonora], de Oswald. Você poderia contar um pouco sobre isso? E sobre sua relação com o pastiche musical?

Sim, eu gosto de ir nessa linha com a questão: isso é uma citação clara ou não? Mas, no geral, acredito muito em colagem hoje em dia; somos sensíveis o suficiente para enxergar pastiches em todos os lugares, artigos da Wikipedia, atributos de gênero, filosofia pessoal… “Tudo é um remix”.

À parte a analogia já mencionada, a duração total do vídeo (cerca de 33 segundos) é especialmente relevante para você, numericamente ou por alguma outra razão?

Eu queria que a peça fosse curta, por volta de meio minuto, e queria uma duração que fosse facilmente memorizada.

Sobre o termo “citações”: qual palavra alemã você usaria para isso? E sobre citação: não podemos realmente citar uma letra ou uma palavra, porque são elementos da linguagem ela mesma. De certa forma, se você se aproximar da duração de uma única amostra para cada excerto musical, você se depara com o mesmo problema. Suscita questões sobre a presença do musical: trata-se uma colagem? A amostra está lá, como se tirada de outra música, ou é uma representação de uma amostra, realizada digitalmente, usando os mesmos números daquela que representa. Você acha que o termo “citação” é apropriado para essa circunstância? Você já pensou sobre a relação entre sampleamento e o tamanho da amostra?

Em alemão diríamos zitatefremdanteile ou fremdmaterial; ou samples, também. Mas, como você disse, é a grande questão não respondida, quando é simplesmente um som [tone] ou quando é uma citação (que pertence a alguém, protegida/proibida pela lei).

Esta questão esteve presente nos debates sobre sua performance? Você entregou milhares de formulários de licenciamento das amostras utilizadas para a GEMA [a sociedade alemã de direitos musicais de performance e reprodução mecânica]. Entretanto, as pessoas, ouvindo sua obra, não podiam dizer se você usou ou não essas peças declaradas nos formulários…

Sim. As pessoas hoje em dia estão completamente incertas sobre quando há uma citação e quando as leis de direitos autorais podem ser aplicadas. Um problema grande para blogues, ao menos na Alemanha. Embutir um vídeo do Youtube num blog já pode ser considerado uma infração de direitos autorais. É terrível.

Quando o tamanho da amostra é menor, perde-se a identidade dela, e músicas distintas podem ser mixadas indistamente. Posso interpretar isso de duas formas: como se minha percepção não fosse rápida o suficiente, não conseguindo distinguir entre partículas sonoras e fragmentos – talvez, se eu fosse um pássaro, conseguisse… Ou então como se houvesse um denominador comum entre cada música – algo como elementos mínimos, iguais. O que você pensa sobre isso?

Na minha pequena peça [Product Placements] eu quis compor indo desde milhares de partículas sonoras (que, claro, criam ruídos) até uma única citação de 2 segundos de duração, ao final (que é definitivamente reconhecível como tal). E no ínterim, então, tem de tudo. Portanto não há como alegar não haver citações nesta peça e não há como alegar só haverem citações nela. Acho isso, musicalmente e conceitualmente, o mais interessante de tudo.

Sobre Compression Sound Art (2009): com a digitalização, tudo pode ser traduzido/transposto/transformado usando as mesmas regras, pois pode ser tratado como número. Vejo que você explora esse nivelamento utilizando exemplos sarcásticos e irônicos. Isto parece mostrar algumas coisas: podemos comprimir informação, mas não significado; podemos trivializar coisas de dois modos, fazendo-as parecer muito iguais (apenas informação na era da informação, dos meios de comunicação de massas [mass media]) ou fazendo-as muito diferentes (com frases como “a bíblia é <a verdade>, o torá não é,” etc). Você teria algum comentário a partir disso?

Boas observações. Mas você poderia também pensar numa mudança de percepção: talvez, para uma mosca, um segundo seja equivalente a uma hora para humanos. Como computadores e alto-falantes podem produzir freqüências que humanos não conseguem ouvir, mas morcegos sim, você poderia pensar que máquinas podem fazer compressões de áudio passíveis de decodificação por outros animais, e por outros computadores. Há quem diga que devemos tratar computadores como sistemas vivos.

Há aí algum trocadilho/crítica sobre o pensamento católico?

Claro, há uma crítica ao pensamento católico.

Há uma seção em que as imagens são a informação. Assim que se compreende isso, é possível descomprimir os dados (memória dos sons) e preencher as brechas sonoras com nossa imaginação. É bem bacana!

Boa e velha teoria semiótica, a diferença entre significado/significante.

Indo mais para o aspecto técnico da peça, como você fez as compressões? Sinceramente, Você atuou como no texto da peça, fez o que o texto diz ter sido feito? Você poderia dar exemplos de como fez?

Não me lembro exatamente, alguns exemplos estão certos (em Beethoven [“sinfonias completas tocadas em 1 segundo”], você até pode escutar o coro da Nona Sinfonia no fim). Alguns não estão. Usei um plug-in VST, da Sony, eu acho.

Existe uma citação famosa do Merzbow, Masami Akita: “Se ‘ruído’ significa som desconfortável, então música pop é ruído para mim” [entrevista com Oskari Mertalo, 1991]. Lembro de você dizer algo similar num vídeo – não me recordo qual; que para você música pop é ruído cotidiano e, portanto, material composicional. Embora semelhante à frase de Masami, tem um significado totalmente diferente. Você poderia comentar?

Ah, obrigado, eu não conhecia essa citação. Na realidade eu quis dizer o mesmo que Merzbow. Nessa entrevista (http://www.kreidler-net.de/__theorie/neural-interview.htm), ao fim, eu disse que gosto de fazer música ruidosa. Música pop é ruído!

Creio que Merzbow quis dizer que desgostava de música pop e a tratava com indiferença (como barulho, indesejável). Sua atitude parece ser mais como: fazer música artística com os escombros, os ruídos da sociedade contemporânea, ou seja, com a música pop. É por isso, eu penso, que você utiliza músicas pop não famosas. Você usa temas famosos principalmente pelo conteúdo semântico, mas não músicas pop famosas pois, uma vez famosas, perdem a qualidade de ruído, esse aspecto de sobras. Você concorda?

Sim, mas ainda é algo que eu desgosto. Eu gosto de citar coisas que eu não gosto.


postado em 30 de junho de 2012, categoria Uncategorized : , , , , ,