auto-ajuda

dois aforismas de nietzsche, que mandei para paula gontijo, para assim mandá-los a mim mesmo.
Humano, Demasiado Humano §61. SaberEsperar. – Saber esperar é algo tão difícil, que os maiores escritores não desdenharam fazer disso um tema de suas criações. Assim fizeram Shakespeare em Otelo e Sófocles em Ajax; se este tivesse deixado o sentimento esfriar por um dia apenas, seu suicídio já não lhe teria parecido necessário, como indica a fala do oráculo; provavelmente teria zombado das terríveis insinuações da vaidade ferida e teria dito a si mesmo: quem, no meu lugar, já não tomou uma ovelha por um herói? será uma coisa tão monstruosa? Pelo contrário, é algo humano e comum; dessa forma Ajax poderia se consolar. A paixão não quer esperar; o trágico na vida de grandes homens está, frequentemente, não no seu conflito com a época e a baixeza de seus semelhantes, mas na sua incapacidade de adiar por um ou dois anos a sua obra; eles não sabem esperar. – Em todos os duelos, os amigos que dão conselhos devem verificar apenas uma coisa: se as pessoas envolvidas podem esperar; se não for o caso, um duelo é razoável, pois cada um diz a si mesmo: “Ou eu continuo a viver, e então ele deve morrer imediatamente, ou o contrário”. Em tal caso, esperar significaria sofrer por muito tempo ainda o horrendo martírio da honra ferida, diante de quem a feriu; o que pode constituir mais sofrimento do que o que vale a própria vida.
Aurora §317. O julgamento vespertino. – Quem reflete sobre a obra de seu dia e sua vida, quando se acha cansado e no fim, normalmente chega a uma conclusão melancólica: isso não se deve ao dia e à vida, no entanto, e sim ao cansaço. – No meio da atividade geralmente não nos permitimos tempo para julgar a vida e a existência, e tampouco no meio do prazer: mas, se isso vem a acontecer, não mais damos razão àquele que esperou pelo sétimo dia e pelo repouso para achar muito belo tudo o que existe – ele deixou passar o melhor instante.

{ambas as traduções de paulo césar de souza para a companhia das letras}


postado em 18 de abril de 2015, categoria excertos : , , , , ,

§6.4311 (2014-10)

uma proposição de guilherme darisbo (para uma coletânea dada da plataforma recs) me fez fazer uma música conceitual e pouco experiênciável. afinal, segundo Ray Brassier, a experiência é um mito (ler artigo genre is obsolete). a peça é uma proposição envolvendo um texto, incluso abaixo, um arquivo .pd (um gerador da própria peça, que precisa do software pure data para funcionar) e um arquivo .wav de curtíssima duração. pode ser baixada aqui.

Henrique Iwao – §6.4311 (Outubro de 2014)

Um arquivo wav de áudio com uma duração quase nula ou nula para produzir silêncio. Uma imagem png transparente muito pequena.

No Tractatus Logico-Philosophicus, Ludwig Wittgenstein escreve: “A morte não é um evento da vida. A morte não se vive. Se por eternidade não se entende a duração temporal infinita, mas a atemporalidade, então vive eternamente quem vive no presente. Nossa vida é sem fim, como nosso campo visual é sem limite.” (Edusp, 2001, Trad. Luiz Henrique Lopes dos Santos, p.277)

1. Seria esse parágrafo uma confrontação com a doutrina do eterno retorno, exposta no Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche?

2. Em um sentido, o instante não pode ser parte desse presente, porque é justamente o que, apesar de infinitesimal, já passou. (contra Wittgenstein).

3. Eu poderia dar a entender que tender a zero não ajuda em nada. Mas tender a zero nesse caso é tentar eliminar a possibilidade da experiência (fenômeno), para dar lugar ao conceito.

4. A experiência do conceito pode ser então vivida, assim como a de morte (do conceito de morte).

5. Isso de modo algum resolve a crítica esboçada por Brassier (ou melhor – chutada em “Genre is obsolete”) (a alma/o eu não é uma mônada, mas também um composto, ou então, um resíduo).

6. A peça, entretanto, existe. Se há uma tentativa de autoanulação enquanto fenômeno é porque a peça é também essa tentativa (ela nem exemplifica bem o aforismo nem o comenta bem, mas caminha junto a ele).

 


postado em 9 de outubro de 2014, categoria excertos, obras : , , , , , , , , , , , ,

gaita de foles

diz nietzsche em crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo, capítulo i., §33 (tradução de paulo césar de souza):

Quão pouco é necessário para a felicidade! O som de uma gaita-de-foles. – Sem a música a vida seria um erro. O alemão imagina até Deus cantando canções.

talvez o grupo les luthiers, em seu álbum volumen 3, tivesse lido o tal parágrafo ao elaborar seu romanza escocesa sin palabras.


postado em 29 de setembro de 2014, categoria comentários, excertos : , , , , , ,

as quatro irmãs

1. p.190.

Chegar ao governo e denunciar. Denunciar o quê, estava tudo denunciado.

2. p.324.

Acreditamos em tudo, somos incorrigíveis. Esperávamos até que os empreiteiros negassem a longa tradição de construírem o imediatamente obsoleto.

{ignácio de loyola brandão, não verás país nenhum, global editora, 17ª edição, 1990}


postado em 31 de julho de 2014, categoria excertos, livros : , , , , , , , , ,

congestionamento

1. há uma tirinha genial em que a solução para um congestionamento paralisador é cimentar por cima e começar de novo (eu não consegui encontrá-la e não sei o autor).

2. no romance distópico “não verás país nenhum”, loyola brandão apresenta uma situação ainda pior, uma avenida que acaba por se transformar em um imenso cemitério de carros:

– Quem ia pensar que um dia íamos nos sentar tranqüilos entre os carros, nesta estrada?
– Estão  aí, mortos. Quanta lata velha.
– Os carros ficaram parados dois anos em frente à minha casa.
– Você morava quase no centro. O meu bairro foi pouco afetado.
– Quase fiquei louco, Souza, naquela noite. Queria matar, pegar alguém. Como buzinavam, aceleravam. Podia ver o ar preto de fumaça. A maioria esgotou a gasolina e o álcool do tanque. Ninguém desligava o motor. Pela manhã, as pessoas continuavam dentro dos carros. Como se pertencessem a ele. Câmbio, volante, freio, condutor. Esperavam, não sei o quê.
– Na minha rua teve gente que não acreditou no noticiário, tirou o carro da garagem, pela manhã, e foi embora. Voltou a pé.
– Teve motorista que ficou uma semana, duas, sem abandonar o carro. De vez em quando batiam, pedindo para ir ao banheiro. Recusei, para todos. O que estavam pensando? Que fossem para suas casas. As famílias traziam mudas de roupas, café, comida. E o desespero quando souberam que não circulariam mais? Choravam diante do automóvel, inconsoláveis, lamentando como se fosse parente morto. Mulheres desmaiavam, histéricas.
– Tenho fotos dessas semanas. Principalmente dos rostos. Eles me interessavam mais que os carros bloqueados. Rostos patéticos, expressões perplexas. Como se tivessem sido postas ao mundo de repente. Não era ódio, raiva, irritação. Era derrota, tristeza, interrogação. Fotografei tanto olhar apalermado!
– Nos primeiros tempos, estranhei o silêncio. Foi então que reparei um zumbido permanente nos ouvidos. Até aqueles dias, não tinha notado. O médico disse que não tinha cura. Continua até hoje, me acostumei.

{ignácio de loyola brandão, não verás país nenhum, global editora, 17ª edição, 1990}


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morte zero

ultramorte, megamorte, multimorte, nanomorte, nove mihões de maneiras de morrer (nine million ways to die); qual a morte mais mortal? mas não seria essa pergunta justamente descabida? pois não era a morte que estava do lado da diferença e se bifurcou, dando origem à vida, esta sim, com suas inúmeras variações de grau?

lendo land (the thirst for anihilation: georges bataille and virulent nihilism, routledge, 1992), capítulo 9, “abortando a raça humana”, são figurados outros tantos bergsonismos: matéria e espírito, natureza e cultura, caos e ordem, zero e plenitude, forças ativas e reativas, inorgânico e orgânico, guerra e indústria.

To set up the question of difference as a conflict between the one and the many is a massive strategic blunder – the Occident lost its way at this point – the real issue is not one or many, but many and zero. [147]

se esses dualismos remetem a monismos, esses monismos devem remeter ao grande e imenso zero (o próprio zero também), à diferença diferenciante.

{de um modo bastante ingênuo eu esperava que land fosse um deleuzeano que descontaminasse o deleuzianismo de seu bergsonismo}


postado em 16 de junho de 2014, categoria excertos, livros : , , , , , , , ,

lendo cabrera, a ética e suas negações, #2: sobre hitler

1. Não é que devamos erigir um conjunto de princípios morais para evitar que Hitler legitime seus homicídios idiotas, pois não haveria nenhum princípio desse tipo que o próprio Hitler não pudesse usar em seu benefício. A resistência contra alguém como Hitler ou Stalin não pode significar, em absoluto, uma luta ‘pelos valores autênticos’, ‘pela civilização’, ‘contra a barbárie’ e justificativas semelhantes. Para defender-me, não preciso de uma moral. [69]

2. Os discursos acerca de desastres sociais (guerra nuclear, extermínio judeu, terrorismo etc.) transformam-se, quase insensivelmente, em discursos apologéticos do ser, como quando se fala que uma guerra nuclear seria ‘o fim da nossa civilização’, como se a civilização sem a guerra nuclear existisse, ou como quando se fala do nazismo como da ‘barbárie’, como se alguma vez estivéssemos totalmente fora dela. Utilizam-se retoricamente esses fenômenos sociais, nos quais a condição humana é aumentada a tamanhos imensos, para mostrar que a vida sem esses fenômenos seria ‘civilizada’, livre, não bárbara e ‘verdadeiramente humana’. (Nada como a presença de um monstro para vender a bom preço a ideia de ‘humano’.) [85-6]

3. Hitler continua sendo o grande impulsor da reflexão ética contemporânea: a astúcia da indeterminação se manifesta clara e ironicamente nas condenações éticas das ações de Hitler baseadas em posições filosóficas contrárias umas das outras: para Adorno, Hitler foi possível devido à aplicação irrestrita da racionalidade burocrático-formal, cujo paradigma é a lógica analítica; para Popper, ele foi possível devido à introdução da irracionalidade dialética e do assalto ao princípio da não contradição. Cômico, extremamente cômico! Dada uma filosofia qualquer, é só questão de habilidade e tempo livre fazer com que as ações de Hitler se deduzam dela. O caminho da argumentação é infinito, e da Bíblia a Mein Kampf há apenas o fio de um silogismo.” [103-4]

4. Enquanto os filósofos morais proclamam ser apenas ‘cientistas’, e não pregadores morais, Hitler aproveita para matar alguns milhões. (Hitler conseguiu fazer alguma coisa no terreno da moralidade, assumindo fortemente uma improvisação moral baseada na criação de valores. Não foi publicada uma única obra filosófica de moral que realimentasse tanto a reflexão moral quanto a ‘Solução final’.) [107]

{cabrera, julio. a ética e suas negações. rocco, 2011}


postado em 1 de maio de 2014, categoria excertos : , , , , , ,

no suposto dia da mulher

já que as mulheres ainda são minorias (no sentido deleuziano – já que são os homens que podem devir-mulher), há, dizem (meu conhecimento é parco, apenas olhei no facebook) um dia das mulheres. nessa linha, na minha lista de leitura desse ano, estão joanna russ – the female man, e também judith butler – gender problem. a partir de luce irigaray e monique wittig, criticando ferozmente o patriarcalismo europeu kantiano, nick land, esse deleuziano maldito, escreve, no primeiro ensaio da coleção fanged noumena (kant, capital, and the prohibition of incest, 2012, urbanomic – p. 55-80, primeiro publicado em 1989).

[77] The patronymic has irrecoverably divested all the women who fall under it of any recourse to an ethno-geographical identity; only the twin powers of father and husband suppress the nomadism of the anonimous female fluxes that patriarchy oppressively manipulates, violates, and psychiatrizes. By aloowing women some access to wealth and social prestige the liberalization of patriarchy has sought to defuse the explosive force of this anonymity, just as capital has tended to reduce the voluptuous excess of exogamic conjugation to the stability of nationality segmented trading circuits. The increasingly incestual character of economic order – reaching its zenith in racist xenophobia – is easily masked as a series of ‘feminist’ reforms of patriarchy; as a de-commodification of woman, a diminution of the obliterating effects of the patronymic, and a return to the mother. This is the sentimental ‘feminism’ that Nietzsche despised, and [78] whose petit-bourgeois nationalist implications he clearly saw. (…) The woman of the earth are segmented only by their fathers and husbands. Their praxial fusion is indistinguishable from the struggle against the micropowers that suppress them most immediately. That is why the proto-fascism of nationality laws and immigration controls tend to have a sexist character as well as a racist one. It is because women are the historical realization of the potentially euphoric synthetic or communicative function which patriarchy both exploits and inhibts that they are invested with a revolutionary destiny, and it is only through their struggle that politics will be able to escape from all fatherlands.

[79] If feminist struggles have been constantly deprioritized in theory and practice it is surely because of their idealistc recoil from the currency of violence, which is to say, from the only definitive ‘matter’ of politics. The state apparatus of an advanced industrial society can certainly not be defeated without a willingness to escalate the cycle of violence without limit. It is a terrible fact that atrocity is not the perversion, but the very motor of such struggles: the language of inexorable political will. A revolutionary war against a modern metropolitan state can only be fought in hell. It is a harsh truth that has deflected Western politics into an increasingly servile reformism, whilst transforming nationalist struggles into the sole arena of vigorous contention against particular configurations of capital. But, as I hope I have demonstrated, such nationalist struggles are relevant only to the geographical modulation of capital, and not to the radical [80] jeopardizing of neo-colonialism (inhibited synthesis) as such. (…) With the abolition of the inhibition of synthesis – of Kantian thought – a sordid cowardice will be washed away, anda cowardice is the enfine of greed. But the only conceivable end of Kantianism is the end of modernity, and to reach this we must foster new Amazons in our midst.

(ainda acho uma visão masculina demais, no sentido da projeção de esperanças, do sonho da redenção – mesmo que no descontrole, na aceleração das intensidades)


postado em 8 de março de 2014, categoria excertos : , , , , , , , , , , ,

a única vitória do modernismo

por quentin melliassoux, the number and the siren: a decipherment of mallarme’s coup de dés (urbanomic, 2012, p. 221-2):

Thus, modernity triumphed and we did not know it. The passionate energy expended, throughout the nineteenth century, upon extracting messianism from its Christian matrix, reinventing a civic religion delivered from dogma, an emancipatory politics beyond the old Salvation; this unprecedent effort, on the part of poets (Lamartine, Vigny, Hugo, Nerval), historians (Michelet, Quinet), philosophers (Fichte, Schelling, Hegel, Saint-Simon, Comte), novelists (Hugo again, Zola) and he who we have never known how to classify, Karl Marx, once more to vectorize the subject with a meaning, with a direction freed from ancient eschatology; all that our masters have instructed us to regard as outmoded par excellence – those dead Grand Narratives, at best obsolete when fermented by solitary researchers, at worst criminal when clothed in the statist finery of Progress or Revolution; all this would nevertheless have succedeed in making one breakthrough up to our times, one only, and at a precise point – a unique Poem that would traverse the twentieth century like a hidden gem, finally to reveal itself, in the following century, as the strangely successful defense of an epoch we had buried under our disenchantments.

Mallarmé would have taught us that modernity had indeed produced a prophet, but an effaced one; a messiah, but a hypothetical one; a Christ, but a constellatory one. He would have architected a fabulous crystal of inconsistency containing, at its heart, visible across its transparency, the gesture of the siren, impossible and vivid, who had engendered it, and engenders it always. In this way the poet would have diffused the ‘consecration’ of his own Fiction among all the readers who agree to nourish themselves on the mental host of his fragmented Pages. And all according to an exacting atheism, for which the divine is nothing more than the Self, articulated with Chance itself.

The Coup de dés as christic crystallization of Chance.

As Christal of Nothingness.

As that which makes no longer being, but the perhaps, the first task – the task to come – of thinkers and poets.


postado em 28 de janeiro de 2014, categoria excertos : , , , , , , ,

reconhecimento de padrões: brasil

Em Reconhecimento de Padrões, de William Gibson, Parkaboy manda um e-mail para CayceP (p.107, Aleph, 2011).

(…) Sabia que o Papa é um fã do filme? Bom, talvez não o Papa, mas tem alguém no Vaticano que está exibindo os segmentos. Acontece que lá no Brasil, onde as pessoas não fazem muita distinção entre TV, Internet e outras coisas, existe uma espécie de culto ao filme. Ou não exatamente um culto, mas um desejo de queimá-lo, já que aquele pessoal analfabeto mas que consome vídeo em quantidades industriais acredita que o nosso autor é o Diabo em pessoa. Muito estranho, e aparentemente foi emitida uma declaração, para esses brasileiros, de Roma, dizendo que cabe ao Vaticano e ninguém mais dizer quais trabalhos são os trabalhos de Satã, que a questão do filme está sendo examinada, e nesse meio-tempo não mexam com a franquia. (…)


postado em 18 de janeiro de 2014, categoria excertos : , , , , , ,