nada sobre nada

quando éramos estudantes, mário del nunzio compôs uma música para 4 caixas claras denominada “40 minutos de nada sobre nada”. lembro do título ser derivado sobre uma observação do então professor de composição da unicamp sílvio ferraz, que achamos absurda, mas deixamos passar (era algo como “tal coisa é no fundo 40 minutos de nada”, dito pejorativamente – ele tinha o hábito de palestrar continuamente nas aulas de modo a ser muito difícil de interromper e acabava faltando espaço para expressarmos discórdia). a peça tinha 8 minutos apenas e tentava ser um amontoado razoavelmente nonsense de gestos descordenados. lembro do medo de denise garcia de que a peça realmente tivesse 40 minutos (hoje em dia, após “10 anos de cena de música experimental no brasil”, essa preocupação me soa bastante despropositada).

[dos rascunhos, agosto de 2016]


postado em 28 de fevereiro de 2025, categoria crônicas : , ,

eletracústica

uma vez, em 2008, o professor flo menezes escreveu ao e-mail do ibrasotope, reclamando que estávamos a utilizar erroneamente o termo música eletroacústica. mal sabia ele que realmente estávamos promovendo, na pequena sala de shows que tínhamos, concertos de música eletroacústica; inclusive, em formato acadêmico (vários compositores). respondemos explicando. ele pediu desculpas. estava claro que estava apenas policiando o termo, não tendo interesse nenhum em comparecer.

fui polido, apesar da indignação de alguns. nessa mesma época mário apresentou-me o álbum quadrafônico, de alceu valença e geraldo azevedo, em discussão terminológica da mesma área. usar o a e não o o era o correto, concluiu.

[dos rascunhos, setembro de 2023, resgatado de muitos anos atrás]


postado em 16 de fevereiro de 2025, categoria crônicas : , , , ,

aikido

quando cheguei à aula de aikido, disse ao mestre ivan: “não aguentarei a aula inteira. não me esforçarei muito. não pretendo me desenvolver mais do que o mero básico. não irei à exames de faixa”. ele olhou para mim como se não houvesse ouvido direito e perguntou se eu já tinha um kimono.

de tempos em tempos ele trocava duas ou três palavras comigo sobre ir para a amarela. fiquei eternamente na branca. é claro que, por um lado, declarar tais intenções fere os desejos de qualquer mestre. por outro, é importante exercer alguma atividade em que não se almeja mais que a mediocridade. especialmente para aqueles movidos pela angústia e arroubos de motivação. deixar isso claro deve ajudar a conter as expectativas do mestre; mas não apenas. ajuda a apaziguar as contradições internas.

[dos rascunhos, novembro de 2015]


postado em 10 de janeiro de 2025, categoria crônicas : , ,

em minas

1. o rapaz se despedindo da namorada: queijinho.

2. finalmente o material didático fora entregue e a professora então tem algo muito importante a comunicar aos alunos. ela diz: tenho uma surpresa para vocês! é algo que estávamos esperando e que vocês vão gostar muito. algo muito maravilhoso. um dos alunos pergunta: professora, é queijo?


postado em 8 de janeiro de 2025, categoria crônicas : , ,

zbig

triste com a morte do músico zbigniew karkowski, que chamávamos de zbig ou então karka (seguindo o costume de mário del nunzio). quando ficávamos irritados com sua grosseria ou então dando risadas, dado seus acessos de eterna adolescência, certamente tínhamos em mente que ele era um de nós – um sujeito que sobretudo amava fazer música de modo radical, um músico experimentalista, um “amigo do barulho”. não era, pois, apenas “mais um punk velho” ou então um “maldito polonês pós-guerra fria”, mesmo que normalmente agisse como um.

um dos primeiros contatos que tive com o noise foi a coletânea de remixes de persepolis, originalmente de iannis xenakis, que incluía “fazer sem fazer“, do zbig. essa coletânea marcou o som, ainda no contexto da música eletroacústica, que eu e del nunzio desenvolvemos entre 2003-2005. em 2007, já ingressados na crescente cena experimental brasileira saber, foi importante saber que karkowski tinha se tornado amigo de batavinho, panetone (crosa) e peter gossweiller.

alguns anos mais tardes j.-p. caron e mário organizariam shows dele. em uma das ocasiões, hospedado na sede do ibrasotope, ele estava quase chorando e com raiva, tendo brigado de alguma forma com o sukorski, olhou pra mim e disse “i don’t like you“, jogando uma lata de cerveja em direção à minha cara. depois, pra fazer as pazes, me ofereceu, de manhã em uma padaria, uma dose de vodka muito ruim. “um brinde”. tive de tomar.

quando ainda não nos conhecíamos fui a um show dele no sesc paulista. era uma sala pequena. karkowski tocou muito alto, talvez até demais, mas o pior é que havia pausas na segunda parte de seu show, reforçando os choques sonoros, mesmo depois que uma das caixas pifou, com direito a fumacinha. cobri os ouvidos com as mãos durante boa parte, mas saí meio surdo. quando voltava para casa, andando por uma avenida paulista deserta, tive a sensação de ter me transportado para uma realidade distópica, de calmaria e apatia após conflitos. isso foi bom. na verdade, mais que bom – foi marcante. 

mais de uma vez tocou por 5 minutos porque estava bêbado demais. por essas e outras, apelidamos ele, pelas costas, brasileiramente, de zé bedeu krakovia, o karka. já gossweiller e crosa o chamavam de mestre. era um mestre, de certa forma, e guardei dois de seus pensamentos. de quando em quando mandava e-mails pro mário, muitas vezes com mensagens absolutamente irrelevantes – como quando se vangloriou de um time europeu ter ganho de um brasileiro no mundial de clubes de futebol. ao final da vida, soubemos que perguntou pro batavinho se sabia de algum xamã, afim de tentar outra maneira de combater seu câncer. quando morreu, sérgio pinto sugeriu que ao invés de silêncio, fizéssemos ruído. então:

dediquemos esse minuto de ruído em homenagem ao falecido zbigniew karkowski.

[dos rascunhos, dezembro de 2013]


postado em 23 de novembro de 2024, categoria crônicas : , ,

na copiadora, 2024

1. abrindo o pen drive, há duas pastas, ontem e hoje. o atendente pergunta: é ontem? ao que eu respondo, hoje, sempre hoje.

2. de novo a impossível tarefa: xerocar partituras edições urtext. sempre costumava falar isso apenas em tom de piada, mas hoje me ocorreu que talvez seja de propósito – o designer escolhendo o formato perfeito para afastar aqueles que querem trabalhos fáceis e rápidos, garantindo assim que compremos os originais. problemas para resolver? não é segredo que a vida prática tende a favorecer a apatia.


postado em 21 de novembro de 2024, categoria crônicas : , ,

no uai, 22 de outubro

uai é acrônimo para unidade de atendimento integrado, o equivalente mineiro do poupa tempo, paulista. é uma instituição que acelera os trâmites estatais, sem entretanto eliminá-los. torna, portanto, os procedimentos suportáveis, servindo assim a uma dupla função – de aceleração dos processos, mas também de manutenção do aparato burocrático.

ao precisar renovar a carteira de identidade, vai-se ao uai. não sem antes agendar a ida. mas agendar a ida tem a função apenas de impedir que o local fique absolutamente lotado, porque de resto – devemos esperar na fila e pegar uma senha normal, cujo atendimento é definido por ordem de chegada.

dessa vez, ao entrar meio atônito na fila errada, tenho a estranha experiência de presenciar um senhor tendo um avc e entrando em convulsões. muita gente observa, eu não quero ser mais um destes. os seguranças não dominam como deveriam a arte dos primeiros socorros e o samu demora a chegar. um atendente se prontifica a evitar o pior, enquanto um rapaz, claramente perturbado, resmunga que amarelo desse jeito é melhor já chamar o iml.

uma hora depois, quando finalmente sou chamado no telão da sala de espera, eis que quem me atende é nosso pequeno herói. ele comenta com a colega que vai ter pesadelos essa noite. recolhe minhas digitais, minha assinatura e tira a foto de rosto, duas vezes (na segunda estou sorrindo). até sexta deve ficar pronta. se puder avalie o atendimento. aperto excelente e vou em busca de um café.


postado em 23 de outubro de 2024, categoria crônicas : , ,

combinação

por volta de 2004 estávamos eu, lucas araújo e mário del nunzio em frente à barraca de sucos da física da universidade de campinas. haviam cerca de 20 sabores de suco possíveis. o de laranja, no entanto, poderia servir de base para os outros, sendo uma das 3 bases possíveis (as outras: água e leite). mas além dessas 59 possibilidades (incluindo laranja com leite, mas excluindo laranja com água), seria possível combinar duas a duas (190×2 + 171 possíveis), todas as outras, e também três a três (1140×2 + 969). com as diferentes bases teríamos então 59 + 551 + 3249 = 3859 possibilidades de suco. de modo que se nós três pedíssemos um suco diferente a cada dia por cerca de 3 anos e meio e compartilhássemos os copos, terminaríamos assim por realizar o feito de tomar todos, durante nosso período de graduação. contentamo-nos, entretanto, em apenas pedir as piores combinações possíveis. lembro de pedir, orgulhoso, abacate, beterraba e limão, com leite.

[dos rascunhos, junho de 2013]


postado em 7 de setembro de 2024, categoria crônicas : , , ,

máxima do reino do caos

uma desavisada conversa com a amiga em meio a uma improvisação musical na kasa invisível, uma quinta de improviso. é logo repreendida por outra ouvinte. desaforada, responde: “mas isso não é tudo uma experimentação? minha conversa também pode fazer parte”. acontece que ela mesma, frente a um público silencioso e atento, não consegue realmente acreditar no que disse. queremos ser indulgentes sem que isso seja evidenciado socialmente. a desavisada sai da sala.

após a apresentação, no botequim vegano, gabi comenta o ocorrido e carol cita o episódio do irmão do jorel em que um legume fala: “tá achando que o reino do caos é bagunça?!”. é que, quando os músicos devem criar a música na hora, em meio à liberdade da experimentação, precisam estar concentrados, atentos uns aos outros. fazem música de câmara, no fundo, e interferências exteriores dificultam esse equilíbrio instável. em contraposição, em um show de rock, por exemplo, em que todos sabem o que devem fazer, o público pode cantar, beber e falar, que a música sairá incólume. de modo que

enquanto o império da ordem permite o caos, o reino do caos exige a ordem.


postado em 19 de julho de 2024, categoria crônicas, slogans : , , , ,

esse ainda não

estávamos na ufmg para um encontro do grupo de pesquisa modos de presença nos fenômenos estéticos e no preâmbulo à reunião, lembrei de devolver petrogrado, xangai: as duas revoluções do século xx, de alain badiou, para thiago borges. em seguida, matreiro, retirei da minha mochila a floresta da destruição, um livro jogo de ian livingstone, e perguntei para filipe andrade, como boutade:
– você já leu esse?
ao que ele respondeu, com seu jeito gentil-formal habitual:
– esse ainda não.


postado em 18 de maio de 2024, categoria crônicas : , , ,