Santo Seiya e as Listas

Há dois pontos fortes em Cavaleiros do Zodíaco, associados a duas características infantis. Primeiro, a paixão por listas. Como crianças que decoram todas as capitais dos países e se desafiam a dizer certas marcas de produto, nomes de carro, integrantes de times esportivos, datas da história mundial etc. Pokemon, por exemplo, é exemplar em explorar essa paixão, fornecendo uma lista improvável mas semi organizada de um número cada vez maior de monstros, características e transformações (evoluções). Aqui, entretanto, há um ponto de partida mais explícito: usaremos os signos do zodíaco. Eles conectam a animais e híbridos mitológicos, mas via helenismo romano, ligam-se aos planetas e as deuses gregos. Daí, pode-se também, como a tradição já o faz, extrapolar ligações com a mitologia grega. De forma que há uma série grande de personagens possíveis e de poderes. Os personagens podem fazer referência a personagens e seres, e os poderes podem surgir da análise, da separação em elementos, das inúmeras informações e caracterizações zodiaco-mitológicas disponíveis. Ademais, há como fazer cruzamentos e conjunções. E como é uma série japonesa e que nunca se propôs fidelidade ao ocidente, não há porque não ser arbitrário e inconsistente, quando proveitoso.

À possibilidade de gerar colecionáveis diversos, sejam cartas, figurinhas ou bonecos acrescenta-se a principal: montar a série como um grande arco de embates, como um campeonato esportivo, planejando como os encontros exploram a lista de atributos, e como os novos atributos (armadura de ouro, ítens da caixa de libra, aprendizado de golpes e defesas) vão surgindo, além de como criam dinâmicas de duração (histórias dos atributos, complementação do personagem, morte súbita, influxo de estamina). Mas daí o segundo elemento aparece. Ele se dá da articulação de dois fatores. Se fossemos comparar Saint Seiya a um game, seria muito mais Heroes of the Might and Magic do que Street Fighter; ou então: as batalhas são mais como jogadas de tabuleiro do que dinâmicas de esportes corridos. Há ali a lógica de turnos. E acoplada a ela existe todo um grafismo da imobilidade, da sequência teatral de cenas, das encenações por bloco. Ou seja, há um imenso espaço em que os poderes, os golpes, as defesas e os danos conseguem acontecer, mas deixando propositalmente o seu “como acontece” como uma sequência de cenas, a serem completadas e dinamizadas pela imaginação. Assim, além de poder listar personagens e atributos, a criança pode também guardar um repertório de disparadores de golpes, poderes, defesas e danos, que passa a poder acontecer em qualquer lugar, com o devido complemento da imaginação – o transporte dos grafismos para a vida ativa é inteiramente mental e o das ações estereotipadas facilmente imitável. Esse espaço criado em uma ação estática, ou melhor: o estático na ação que cria esse espaço de imaginação, é o que possibilita a criança sonhar com os mesmos quando não está a ver a série.

Ademais, há algo de verdadeiramente grego nos personagens de Cavaleiros do Zodíaco. É o que me leva a aproximar a série dos escritos de Paul Feyerabend, em Adeus à Razão: lá ele fala do caráter agregado do mundo homérico como a visão de que os humanos são como bonecos de trapo, em que:

elementos relativamente isolados foram costurados (o braço, o antebraço, o tronco, o pescoço, a cabeça com um olho que é simplesmente colocado em seu lugar, sem “olhar” para nada) e funcionam como estações de passagem para eventos (ideias, sonhos, sentimentos) que podem surgir [120] em outras partes e só brevemente se fundem com um ser humano específico. A ação, em nosso sentido, não existe nesse mundo; um herói não decide fazer com que certo evento ocorra e o causa; ele apenas se vê envolvido numa série de ações e não em outra, e sua vida se desenvolve de acordo com isso. Todas as coisas – animais, carruagens, cidades, regiões geográficas, sequências históricas e tribos inteiras – são apresentadas dessa maneira “aditiva”: são agregados sem “essência” ou “substância”. [1987, ed. Unesp 2010, p.119-120]

Não haveria tampouco uma verdade abrangente que vá além de uma enumeração de detalhes, cuja melhor maneira de apresentação seria uma lista. Os deuses não veriam a unidade oculta sob os eventos, mas sim a lista mais completa que os descreve aditivamente. Ademais

Os poemas homéricos contêm discursos convencionais (tais como aquele feito por um general para suas topas antes da batalha) e descrições de situações típicas. Os discursos e as descrições são repetidos palavra por palavra quando surgem circunstâncias semelhantes. Os poetas homéricos não estavam interessados em produzir expressões novas e “originais” para as mesmas velhas coisas. Eles queriam o melhor estereótipo para uma situação determinada e, quando o encontravam, repetiam-no sempre que aquela situação ocorria. [p. 155]

Porque afinal, combinando a possibilidade de uma grande lista com várias combinações com o uso de estereótipos de ação, temos diversão garantida. A menos que você, diferentemente de mim, cresceu demais.

{聖闘士星矢(セイントセイヤ), série de animação de 114 episódios de 24 min., dir. Kouzou Morishita, 1986-9}

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