não-bloco

ao contrário do que teorizei em 2013, o não-bloco, agora que pude observá-lo caminhando durante algumas horas no domingo, do centro cultural são paulo até a paulista, descendo até o centro e virando para a república, apresenta-se como uma solução tipicamente paulista para as aglomerações carnavalescas. há sempre uma expectativa, mas em nenhum ponto do trajeto uma realização: pessoas semi-embriagas caminhando em direção a “mais caminhadas”, de uma felicidade contida, do deslocar-se, às vezes quase dançando – pequenos fragmentos de canto e coreografia; um clima de possibilidades (tensão de briga, olhares ansiosos por azaração), mas ao fim, conscientes da sensação de que há um objetivo virtual (o bloco), que é mero pretexto para o atual (o não-bloco), e que na verdade, esse último, que seria condição de existência para o primeiro, encontra-se aqui estável, invertendo a relação.

ânsia de poder como desaparecimento? segue uma pequena lista de momentos divertidos:

  1. um senhor de 70 anos de idade vestindo uma camiseta larga branca, com bolinhas vermelhas, toca mp3 pendurado no pescoço, fazendo uma dança ridícula, mas com um balde ao lado, para que os transeuntes depositassem dinheiro.
  2. um senhor de 60 anos de idade parado em uma escadaria, impassível, com óculos escuros e terno, segurando a coleira de seu cachorrinho de pelúcia (mas vejam, ela rompeu-se, a qualquer momento o dog pode escapar (?!)).
  3. na frente do novo shopping (cidade?) plantaram alguns pau ferro, em buracos minúsculos. os paisagistas (?) sabem que essa árvore cresce bastante e por vezes cai, não? (imaginei isso acontecendo)
  4. uma jovem de 20 anos de idade com a boca muito aberta e a língua inteiramente para fora, em pose pornográfica que no momento parecia ter sido realizada para tentar irritar dois rapazes hipócrito-libertinos, que se afastaram em seguida.
  5. uma tentativa de formação de bloco, ao som de enter sandman, próximo ao anhangabaú, com uma adesão distanciada e não coordenada (aquele grupo estaria tentando dançar axé?).

postado em 27 de fevereiro de 2017, categoria comentários, crônicas : , , , , ,

ideia para um museu

1. em “território fantasma”, william gibson fala de um contêiner cheio de dinheiro sujo, esperando por uma oportunidade de lavagem. enquanto está a esperar, é deslocado de navio em navio, no mar, nunca ancorando. as posições dele são monitoradas por um sujeito que, entre outras coisas, presta serviço para um artista de arte locativa – ele programa roteadores secretos que projetam virtualmente imagens em locais públicos. algo que poderia apenas ser visto com o “google glass” antes do google glass, um dispositivo DIY pré-mercadológico.

2. na exposição do kandinsky no ccbb bh (que aliás, continua sem pagar o dinheiro de apresentações que lá fiz em janeiro), aquele brinquedinho imersivo sem graça, no térreo. mergulhar em uma realidade virtual de cores, um peixe para as formas.

3. eu já não sou um apreciador de kandinsky, acho-o um pintor grosseiro – comparemos com um pavel filonov ou um kasimir malevitch ou com não-pinturas de um el lissitsky. na verdade, eu acho o trabalho de posters sovietes mais interessante e melhor executado, por exemplo, embora sem as preocupações musicais (e em se tratando de preocupações musicais, o suprematismo as tem em melhor forma e certamente paul klee também, na alemanha).

4. gibson, ao explicar porque seus últimos três romances não se passavam em futuros distópicos, como todo o resto dos seus romances e contos anteriores, respondeu: “o futuro é agora, o futuro já está aqui, apenas desigualmente distribuído”.

5. um ex-kgb, muito puto com os donos do contêiner, armou um modo de contaminar o conteúdo com césio, de modo que eles não o percebessem. dinheiro marcado, mas apenas para dectetores de radiação.

6. um museu não precisa mais do que roteadores e celulares, projetores e superfícies, alguns móveis. mapping e esculturas virtuais. sensores e passeios por zonas temporárias.


postado em 14 de julho de 2015, categoria comentários : , , , , , , , , , , , , ,

tournier e o outrem

em sexta-feira ou os limbos do pacífico, michel tournier escreve (rio de janeiro: bertrand brasil, 1991, p. 31):

descobriu assim que outrem é para nós um poderoso fator de distração, não apenas porque nos perturba constantemente e nos arranca ao pensamento atual, mas ainda porque a simples possibilidade do seu aparecimento lança um vago luar sobre um universo de objetos situados à margem da nossa atenção mas capaz a todo o momento de se lhe tornar o centro. esta presença marginal e como que fantasmal das coisas com que, de imediato, não se preocupava apagara-se aos poucos no espírito de robinson. encontrava-se doravante rodeado de objetos submetidos à lei sumária do tudo ou nada (…)

a arte, certas práticas: como essa dissolução da virtualidade não é individualista, mas sim individual, sem outro – devir.


postado em 26 de agosto de 2013, categoria comentários : , , , , ,