torrada

O quanto essa indagação [“seria possível algo ser tanto uma obra de arte quanto um objeto não-artístico?”] não se assemelha àquela em que é perguntado se possível ter e comer o bolo? Imaginemos que temos um bolo, uma fatia de bolo, para simplificar, ou melhor, uma torrada, que comeríamos junto ao café produzido tanto para que se tenha um bom café como para que seu filtro de papel, usado, seja apropriado e utilizado para a criação de uma obra de arte visual. Após você consumir a torrada, não haverá mais a torrada. Não havendo mais torrada, você não mais a possuirá. Assim, possuir (ter) e consumir (comer) são excludentes. Se a relação entre obra de arte e contraparte material for definida de modo similarmente excludente, então ser uma coisa implica não ser a outra. A ideia de objetos não-artísticos já indicava isso. Só que eu sou um sujeito um tanto insistente, com uma boa dose de teimosia, e quero explorar esses meandros até extrair daí pensamentos imprevistos. Lembro do clássico Alice Através do Espelho, em que a raínha branca declara que a regra para a geléia é que se tenha ontem e amanhã mas não hoje1. Assim como a geléia da raínha branca, a torrada pode ser retida. Reter a torrada é comê-la, mas apenas amanhã, nunca hoje. A comida mantém sua função, mas a ação que a consolida é postergada indefinidamente. A intenção prévia não se converte em intenção em ação.

Assim elaborado, esse caminho parece introduzir mais confusão do que direção. Reter um objeto como não-artístico seria tratá-lo sob a promessa do artístico mas não usá-lo como objeto cotidiano. Não apenas é estranha a diferenciação entre promessa e efetização quanto a tomar algo como artístico (o que seria isso?), como é estranho que um objeto cotidiano não seja usado quando poderia. Se alguém perguntar porque a torrada, já mofada, não foi jogada fora, seria um tanto estranho dizer “porque vou comê-la amanhã”2. Não faz muito sentido fazer e não comê-la. A não ser que a torrada seja guardada em condições muito específicas, em um ambiente controlado onde ela se mantenha constantemente comestível. Talvez o dono da torrada pense: “algum dia comerei a torrada”. Mas nesse caso a torrada é parte de uma situação inteira, sendo apenas um dos componentes de uma performance que não tem nada de habitual e cotidiana.

[1 “The rule is, jam to-morrow and jam yesterday – but never jam to-day.” (Carroll, 1994, p. 78). A frase responde a um trocadilho possível entre inglês e latim, o que não vem ao caso.]

[2 Exceto que Carolina Deptulski, quando criança, ao receber um conjunto de chocolates coloridos, resolveu guardá-los para os comer em uma ocasião especial. Como ela tinha os chocolates como muito especiais, a ocasião especial à altura acabou não chegando nunca. Quando desistiu de esperar os chocolates já estavam a muito mofados e curiosamente tinham perdido suas cores, todos aparentando um cinza nada convidativo.]


postado em 6 de dezembro de 2021, categoria aforismos : , , , , ,

todos os meus amigos

todos os meus amigos viraram padeiros
todos meus colegas vão de uber
e eu, que nado mal e ando de bicicleta mal
não tenho celular e não sei fazer torrada


postado em 11 de agosto de 2017, categoria prosa / poesia : , , , , , ,