a verdadeira história de odisseu e as sereias

diz kafka que odisseu só se salvara porque achava que as sereias cantavam e ele e sua tripulação não as ouvia, quando, na verdade, serias não cantam: são seres infrasônicos. pois, ao ajustar a rota em direção aos rochedos errantes, de última hora, também havia encerado os ouvidos, evitando a estratégia do mastro, que havia de falhar. as serias, então, de certo só metaforicamente entoavam doces cânticos, pois eram muito belas e evidentemente desejáveis aos marinheiros solitários, cansados da pederestia. entretanto, sua principal arma não era essa: como ficavam quietas e todos queriam ouvi-las, as embarcações aproximavam-se perigosamente, com uma quietude tensa e desejosa. a música que precedia o banquete era feita de expectativa, transbordada de escutas e só rompida pelos horripilantes gritos dos navegantes, quando da refeição das ninfas.

colocando cera ao ouvido, era a curiosidade que o ingênuo/engenhoso odisseu tapava.


postado em 5 de fevereiro de 2017, categoria histórias : , , , , ,

lendo cabrera, a ética e suas negações, #1

1. a vida e obra. escolher compor ou não compor: ‘seria melhor não compor uma obra’. a violência do nascimento, tanto quanto da morte; da criação, tanto quanto da destruição. porque eu deveria preferir produzir a não produzir?

2. jogos mortais: “A morte por gás e morte nuclear são maneiras de fazer que o horrível da morte seja coisa nossa, esteja, de alguma maneira, sob nosso controle. É possível imaginar alegria mais intensa que do controle da morte? Pareceria como se o projeto, consciente ou inconsciente, do homem fosse fazer deste mundo um mundo socialmente horrível, para não perceber que ele é horrível.” [88]

3. camiseta com os dizeres ‘PELA APOLOGIA ACRÍTICA DA VIDA’; outra, menos efetiva, com ‘PELA MORTE {suicídio, abstenção, aborto}’.

4. para serem consistentes as éticas afirmativas não poderiam ser afirmativas. contra nietzsche e sua gritaria em pról da vida, cabrera indica o caminho de uma ética negativa e autodestrutiva. (um cristianismo ético-crítico, deve abarcar a possibilidade do suicídio, da abstenção, e eventualmente dos pequenos assassinatos)

5. “O suicida seria perdoado se ele partisse com algum rumo. Mas o que o suicida radical quer é, simplesmente, sair daqui. / O suicida é um viajante kafkaniano.” [57]

{cabrera, julio. a ética e suas negações. rocco, 2011}


postado em 29 de abril de 2014, categoria resenhas : , , , , , , , , , , ,

condensação

“durante todo esse tempo eu estive intranquilo. mas a intranquilidade na calma é como o prenúncio da morte: todos vamos morrer algum dia. e se não há um evento mais drástico, o que é essa intranquilidade senão um adiar e um esperar, sem propósito?”

gostaria de lembrar de onde vem essas palavras, de cortazar ou borges, ou mais remotamente de kafka, autores lidos faz tempo. o fato é que a sombra das palavras tem me rondado, e mais que isso: o sentido vago de algo que fica entre o esquecimento e a lembrança: um vapor do pensamento.

nessa dúvida, minhas palavras – delas irrompem palavras de outros, como um sotaque espanhol imaginado. dos espaços entre elas, vazios se fazem significativos, prenhes de ausências (do quê?), que irrompem ou que se escondem, correndo de um lado ao outro.

por isso a dúvida sobre se colocar ou não aspas no primeiro parágrafo; por isso preciso voltar, terminar o texto; por isso continuarei intranquilo.


postado em 29 de maio de 2012, categoria Uncategorized : , , , ,