por vezes, homem, por vezes, lobisomem

lembro do antigo mau hábito de meu pai, a bradar já deu vou embora, em encontros sociais festivos. não que ele fosse um lobo das estepes, como o quarentão niilista do livro de herman hesse (steppenwolf). é que há algo dessa natureza que surge como possível efeito adverso de uma orientação humanista. afinal, a arte não existe contra a cultura? contra a mediocridade pequena-burguesa. quem dispensa de imediato tal noção, junto à ideia do autêntico, mergulhou cedo ou profundamente demais nas piscinas de plástico do pós-modernismo. certamente não é meu caso. se o humano é composto por uma miríade de impulsões, ainda assim, quando estas se integram na figura do lobo e sentimos já os dentes despontando, antes da tentação a me expressar, sei que é hora de ir embora.


postado em 4 de fevereiro de 2023, categoria aforismos : , , , , ,

górgias na filosofia da arte

ficamos de marcar, camila proto e eu, uma conversa sobre filosofia e arte, dado que ela também está fazendo pesquisa em filosofia da arte. andei ouvindo audio-livros dos diálogos de platão e agora, ao frequentar os podcasts do história da filosofia sem nenhum buraco (history of philosophy without any gaps), uma das coisas que estou curioso pra saber o que outros acham é o seguinte: o sócrates platônico em mais de uma ocasião fala sobre os problemas da retórica. eventualmente, ele lança o argumento: mas não sabe um médico mais de medicina do que um palestrante sagaz? não deveríamos ouvir falar, sobre nossos hábitos alimentares, o nutricionista ao invés do padeiro, a oferecer-nos deliciosas guloseimas?

às vezes tenho impressão que a filosofia cumpre um papel similar nos discursos de artistas àquele criticado por platão no que toca a retórica. no górgias, sócrates faz o grande sofista dizer que além-retórica, seria também capaz de ensinar a seus estudantes a virtude, o que o górgias histórico provavelmente nunca diria. ao invés de ferramenta, bem ou mal usada, essa deslizada torna possível uma crítica mais veemente à sofística, que então cairia em contradição. numa fala sobre música, quando a filosofia intervêm para dar valor e elevar ao bem o conteúdo, faço questão de garantir uma boa salada na hora do almoço. (mas é estranho: é como se o próprio nutricionista fizesse uma eulogia ao croissant.)


postado em 8 de agosto de 2021, categoria aforismos : , , , , , , ,

a nova babel virtual e o colapso da máquina

1. a cidade tornara-se um labirinto global em constante expansão, enquanto nós continuávamos recolhidos. na pós-pandemia, reclusos que somos, finalmente entendíamos o valor da permanência. o apocalipse havia chegado e aceitávamos tratar-se de fim de mundo. a revelação viera da separação entre os elementos do binômio economia e saúde. Sustentabilidade enfim: maximizadores autônomos de urbanismo bricoleur nos forneciam os materiais necessários para o condicionamento paulatino rumo a circuitos de digitalização em espiral. a natureza era refeita e não precisávamos mais de sol nem pele, positivamente hikikomoris, e olhávamos para dentro. restáva-nos a infinita tarefa da construção da nova babilônia, imenso playground virtual de perpétua mobilidade daqueles que redescobriam o nomadismo verdadeiro.

2. no seu incrível conto the machine Stops (a máquina para), de 1908, e. m. forster especula uma humanidade cujos indivíduos vivem isolados em abrigos subterrâneos auto-sustentáveis, geridos por um eficiente sistema – a máquina. desdenham tanto o corpo quanto o personalismo, e sua existência toma a forma de um formigueiro cibernético, de fluxos de imagens, pra usar a expressão do vilém flusser. o problema é que não há um completo abandono da prisão de carne para uma nova liberdade. os humanos evitam contato direto, tanto visual não mediado quanto tátil, mas o fazem em uma dependência excessiva dos equipamentos que os circundam, sem entretanto fundir-se a estes. o estado de coisas, depois de um ponto ótimo, reproduz uma mecânica que degenera em atavismo, e o ressurgimento do religioso, no mecanicismo não-denominacional, é um sinal que o colapso se aproxima. a cessação de atividade finalmente dá lugar ao terror inesperado do silêncio informacional. aprender de segunda mão, tomar tudo como mediado, acaba por mostrar que sair da caverna para encontrar o sol não é tanto encontrar as ideias, mas a incorporação das mesmas em coisas. penso que seja uma forma de vida e seus problemas o que torna as articulações valiosas e vivas, em mutação contra a estagnação do puro espiritual.


postado em 23 de dezembro de 2020, categoria comentários, livros, prosa / poesia : , , , , , ,

filosofia de sobrevôo #1

teeteto acaba por parir sócrates parindo a impossibilidade do empirismo na epistemologia. o velho aristóteles faz listas e, conselho do pai, procura considerar todos os casos pra achar a certa medida. nem sempre suas categorias são razoáveis, entretanto. o início escravocrata misógeno da política é uma espécie de filtro, mas por fim chegamos na democracia. e na amizade, virtuosa. mas na realidade, é por interesse. há perigo, pois é possível que alguma força faça a terra sair dos trilhos. há nos sonhos, reminiscências do dia. hobbes também o acha. é nominalista, tal como goodman. mas qual a ideia desse começo, todo “tratado do humano”, para pular abruptamente no “todos contra todos”? imaginem os escritos políticos de hobbes e rosseau como simulações, que a partir de condições iniciais chegam no que chegam. hobbes leviatã, monarquia, contrato, covenant (pacto). voltando na cronologia, temos os estóicos helenistas, sêneca o estóico hipócrita, conselheiro de todos nós: viver com virtude, aproveitar o dia produtivamente, acreditar no seu caminho, responsabilizar-se pelo que pode e aceitar o cosmos. marcus aurelius, stoic on steróids, o estóico machão, a morte, tudo morre, teu irmão, aquela moça, eu, você, o cachorro, a plantinha, o imperador, o escravo, seus amores. morte e morte. tá vendo aquela pessoa que tá lendo trocentos livros à toa? vai morrer. tá vendo aquele outro que corretamente é homem de ação, embrenhado na política, pela melhoria da sociedade? vai morrer também. [sêneca: julius canus, que extendeu seu aprendizado até a morte ela mesma, foi o que levou mais longe a busca filosófica…]. por fim, temos epictetus, estóico romano raiz, ex-escravo. mas que adianta? chatice. o que me lembra os analectos de confúcio, máximas e conversa fiada (ainda estou na seção de auto-ajuda. só mudei a pratileira de origem). família, temperança de novo, os antigos. essas coisas. vocês sabiam que maquiaveli escrevia contos? descontando, na medida do possível, o machismo de época, com o tema “esposas são piores que diabos”, há lá um sarcasmo, contra a hipocrisia da igreja, que não envelhece. e giordano bruno, ah bruno menino bruno, é só o amor… que nos une. mas é claro que há todo tipo de união, pois o desejo cria e indetermina. o universo só é o todo potência-ato no sentido atemporal. no tempo toda matéria é animada, vide os necromantes. mas não temam que, não obstante a magia, aristótolo dixit: ao observar quem dorme, saberemos se é feliz, e o mais feliz dos homems é o filósofo.


postado em 8 de agosto de 2020, categoria comentários, livros : ,

religião x crença

a religião é o campo em que se insiste muito na fé, por que? é que fé e crença não são sinônimos. lembrando de descartes, pensem nisso: quando aprendo que um triângulo tem três lados e 2 + 2 são 4, adquiro a crença de que seja assim. e o faço porque não existe em mim nenhum modo contra-causal que possa decidir no que eu deva acreditar, de modo a levar-me a uma crença diferente, nesses casos. impossível um triângulo de 4 lados, ou que seus três ângulos não resultem dois perpendiculares. já em outros, quando não há razões suficientes para se decidir por algo, deveremos lembrar que a liberdade pela indiferença é o nível mais baixo desta. poderíamos indagar o motivo. é que aquele que não usa sua capacidade racional de modo produtivo, com a certeza que deus lhe proveu de poder decidir por razões, finalmente se deixa levar pelo que lhe é confuso, abandona a inclinação ao luminoso para ser navegado pela escuridão. e a indiferença, o domínio da livre escolha, provém justamente alimento a esse lúgubre movimento. o que nos preocuparia deveras, pois levaria à descrença. entretanto, é possível direcionar nosso pensar, através de exercícios e experimentos mentais, e estabelecendo regras provisórias aqui e ali, de modo a podermos ver com mais clareza aquilo que era antes confuso, ou que suspeitávamos cheio de obscuridade. se assim fizermos, conquistaremos a liberdade no cultivo e manutenção da clareira do racional.

mas e no caso da fé? seu mecanismo doxástico não seria aquele justamente envolvendo a falta de crença em algum nível, a gerar crenças confusas em outro? e essas não seriam fatalmente acompanhadas por ainda outras crenças auxiliares não declaradas, subterrâneas, a se infiltrarem sem fundamento e a lançarem trevas sobre o edifício da ação? se é verdade que deus não nos quis enganar, então por que nos inculcaria misteriosos ensinamentos obscuros? ensinamentos que, na categoria do obscuro aceitável, a fé, ainda assim, pela vontade, que é infinita, se expandiriam muito além do que podem. fé que, ligando-se à esfera do poder, a potencializar a confusão e obscuridade, interfeririam no que a liberdade alcançaria, até que seja preciso reter os ensinamentos d’o mundo, e dar inúmeras voltas a dizer que a terra move-se sem mover-se, nos turbilhões do espaço. lembremos das boas regras e direcionemos o espírito. é preciso que cada coisa fique no seu lugar. a religião organiza a falta de crença: esse é seu espaço. ou assim talvez pensasse secretamente o filósofo, de máscara no teatro do mundo.


postado em 3 de junho de 2020, categoria comentários : , , , , ,

3 nietzsches

bataille quer delirar junto a nietzsche, rumo à morte e à dissolução do homem, seu ultrapassamento, e por isso escreve um diário confessional, em uma frança ocupada, agregando a ele um compilado inspirador e uma defesa. deleuze só tem olhos para a filosofia, então apara as pontas, seleciona e reorganiza normalizando, e de lá retira argumentos consistentes e um sistema defensável. klossowski está interessado na pessoa e na obra, detendo-se em pormenores, contradições, e vasculhando cartas, traçando os caminhos tortuosos do delírio à filosofia e de volta.

todos eles são fascinados pela última fase de nietzsche. mas nela, bataille pela loucura, deleuze pelas ideias, klossowski pelo humano. um se irmana e é imersivo, outro seleciona e é conjuntivo, o último acolhe e é disjuntivo.


postado em 28 de maio de 2020, categoria comentários, livros : , , , , ,

inefável ou não?

se a arte é essencialmente inefável, então não importa se falamos muito ou pouco dela, se teorizamos ou não, ela permanece como algo de fugidio, indeterminável.

se não é essencialmente inefável, mas apenas ocasionalmente, então seria bom criticarmos e refletirmos sobre as obras, a ver quais ainda permanecem misteriosas após escrutínio.

se não são nunca inefáveis, seria melhor combater as críticas como redutivas e as teorias como paralisadoras, afim de que, do vácuo das palavras surja um quase-nada, um não dizer contido, que se prolifera em nebulosidade, a ser tomada com alívio.

mas e a experiência, não pode ela, sob grades muito determinantes e referenciadas, acabar com a inefabilidade? (como evitar que esse tipo de argumento não recaia no terceiro caso?).

e vale almejar racionalmente o inefável? no caso heideggeriano, há um circundar, como que preparando as condições necessárias para sua erupção. ele, tão frágil, facilmente esmagado, soterrado, esquecido. (mas estamos então no segundo caso e há arte na qual nada floresce, ou no terceiro, mistificando). em jankélévitch trata-se de jogar a escada fora. (mas daí seria melhor estar no primeiro caso).


postado em 26 de setembro de 2019, categoria aforismos : , , , ,

opinião / expressão

assim como boa parte dos filósofos é contra a opinião/doxa, alguma parte dos artistas é contra a (auto) expressão. mas isso porque a filosofia se dá no embate com a opinião, tanto quanto a arte contra a expressão.


postado em 18 de agosto de 2018, categoria aforismos : , , , , ,

adornianos e deleuzianos

a uns anos atrás a diatribe é impossível ser deleuziano circulava na minha bolha. o argumento era: ser um especialista, um entendedor de deleuze, era ser um acadêmico – era explicar deleuze, ou ainda pior: era hipostasiar suas noções e fixá-las como “é assim que se aborda algo”; nada mais a contra-gosto do autor, a bradar pela criação de conceitos e pela “cópula forçada por trás”. de modo que, ao menos no meu entendimento, a partir disso, os dois deleuzianos verdadeiros que conhecia eram nick land e manuel delanda, seguindo a regra fácil do “possivelmente isso irritaria ao próprio autor”. mas, como era de se esperar, deleuze não era o único filósofo de posto renomado a lutar contra os operários da filosofia.

pois adorno, em suas admoestações contra o pensamento da origem e os estilos que dão suporte à apresentações passo a passo, acaba por também se colocar contra aqueles que apresentam seus conceitos na forma de definições e explicações, segundo uma didática das partes. seria antes necessário, para manter-se com o autor, escrever ensaios nos quais os conceitos aparecem em constelações e cujas ideias são atualizações que tanto recolocam preocupações e termos conhecidos como avançam pontos, mantendo-os entretanto, igualmente perto do centro do discurso. nesse sentido, nada mais vão que um dicionário a dizer o que seria a indústria cultural, a regressão da escuta etc.

talvez seja útil então distinguir três aspectos, quanto a um epigonismo: conteúdo, forma e espírito. aqueles que tomam apenas o primeiro aspecto são os estudiosos; um seguidor que toma os dois primeiros mas não o terceiro é um imitador; aquele que toma os três aspectos é um verdadeiro discípulo, contanto que exista um abandono (parcial) do primeiro, mas no caso deleuze, a predominância do terceiro poderia deslocar a necessidade do segundo.

 


postado em 28 de março de 2018, categoria comentários : , , , , , , ,

quanto ao excesso de sentido da vida

1. a arte reduz/fixa
2. a ciência desloca/elimina
3. a filosofia circunscreve/delimita


postado em 1 de outubro de 2017, categoria aforismos, prosa / poesia : , , , , ,