fantasma

em o senhor das moscas, william golding (alfaguara, 2014, p. 102), escreve:

“O problema é o seguinte, Porquinho. Fantasma existe? Ou monstro?”
“Claro que não.”
“Por que não?”
“Porque aí as coisas não iam fazer sentido. As casas, as ruas, e – a TV – nada ia funcionar.”
Os meninos que dançavam e repetiam seu refrão tinham se afastado, e afora o som que produziam era apenas um ritmo sem palavras.
“Mas e se elas não fizerem sentido? Não aqui, na ilha? Se tiver alguma coisa vendo tudo o que a gente faz, e só esperando?”

ali delineam-se os seguintes problemas:

  • o problema de não dominar a técnica.
  • o problema de não estar em presença da técnica.

mais adiante (p. 153), o complemento desses dois é exposto:

“Estou com medo.”
Viu Porquinho levantar os olhos; e continuou a falar, de maneira confusa.
“Não do mostro. Quer dizer, dele também. Mas ninguém mais entende como a fogueira é importante. Se você está se afogando e alguém joga uma corda. Se o médico diz que você precisa tomar um remédio pra não morrer – você aceita, não é? Quer dizer -“

  • o problema da alienação.

numa ilha, a reestruturação da técnica se dá com pinturas no rosto, cerco a porcos, cantigas em roda. selvageria do ocidente que regride a partir de si mesmo. no entanto, pensando numa sociedade em presença da técnica científica, a alienação do tipo “pedra mágica” (falta de domínio da técnica, falta de crença no todo que permite o domínio da técnica) permite também a coexistência da selvageria supersticiosa. se fosse uma letra de rock, o refrão que resumiria esse ponto seria:

from black box to magic stone, back to god.


postado em 24 de janeiro de 2016, categoria citações, livros : , , , , , , , , , ,

alvinismos

exceto os poemas-coleta de uma, duas ou três linhas, posso dizer que não gosto do que francisco alvim escreve (há excessões talvez, ou apenas uma, anamnese). entretanto, essas minicrônicas valem toda uma antologia e mais: pena que não são tantas. resta a algum espírito jovial registrar em mesmo estilo, durante toda uma vida, tais maravilhas que, de tão aparentemente banais, podem não ser distinguidas, tais como ostras no fundo do oceano.

O QUE FOI DELE?
Nós não brigávamos
Combinávamos demais

IRANI, MANDA GILSON EMBORA
Eu mando
mas ele não vai

MESMO?
Vou ali
Volto já

NESTE AÇOUGUE
quero ser carne de segunda

ME VINGO
As pessoas se esquecem
que deixam filhos

ARREPENDIMENTO
Eu não devia ter nascido

ELE
Quero uma metralhadora
pra matar muita gente
Eu mato rindo

PAIXÃO
Se tivesse um remedinho contra
eu tomava

{francisco alvim, poemas [1968-2000]. 7 letras/cosacnaify, 2004}

(observação: como estão em ordem inversa de publicação de livros/conjuntos, seria muito mais adequado que chamassem poemas [2000-1968]. ademais, amostra grátis é, segundo a própria edição, de 1957-63!)


postado em 13 de janeiro de 2016, categoria livros : , , , , ,

jesus indiscernível

escreve arthur danto, em andy warhol, cosac naify, 2012, p.44-5:

A nova pergunta não era, “O que é arte?”, mas “Qual a diferença entre duas coisas, exatamente iguais, uma das quais é arte e a outra não?”. Nesses [45] termos, a pergunta se tornou uma questão quase religiosa. Jesus é simultaneamente humano e divino. Nós sabemos o que é ser humano – é sangrar e sofrer, como Jesus, ou os consumidores a que se dirigem os anúncios. Assim, qual a diferença entre um homem que é deus e um homem que não é? Como determinar a diferença entre eles? Que Jesus era humano é a mensagem natural da circuncisão de Cristo. É o primeiro sinal de sangue real escorrendo. Que ele é Deus é a intenção da mensagem que o halo em volta de sua cabeça anuncia – um símbolo que é lido como uma inegável marca da divindade.

com o advento da transmutação do mundo na terra dos homólogos artísticos, se cada coisa confunde-se com o seu equivalente artístico, em cada homem procuramos o jesus da segunda vinda. a trombeta de deus toca música-silêncio.


postado em 21 de novembro de 2015, categoria comentários, livros : , , , , , , , ,

mario belattin, flores

luiza alcântara estava fazendo séries de desenhos de plantas e comprou o livro flores, de mario bellatin {cosac naify, 2009}. como estava sem tempo para ler e sabia do meu interesse por coleções, me emprestou o livro.

cada capítulo-parágrafo tem nome de um conjunto de flores de mesmo tipo. o livro tem como estratégia criar imagens, cada qual nomeada por uma classe floral. como não entendo muito de flores resolvi procurar rapidamente as imagens não literárias correspondentes. disso não decorreu, para mim, nenhum segredo que unisse as descrições do cotidiano daquele pedaço estranho de mundo, com suas sexualidades desviantes e filhos deformados (as mães ingeriram um remédio que comprovou-se a causa de más formações). parar, antes de engrenar uma narrativa. talvez seja esse o sentido da aparente falta de conexão entre ação e flor (mas botânicos, perdoem minha ignorância).

floresp2
floresp3 rosas orquídeas cravos petúnias tulipas aves-do-paraíso / trevos copos-de-leite açucenas sempre-vivas gladíolos dálias / amapolas magnólias passifloras camélias gardênias astromélias / crisântemos gerânios jacintos begônias primaveras amores-perfeitos / lírios cabelos-de-vênus goivos / flores de laranjeira lótus buganvílias / violetas mentastros giestas / calêndulas rosas japonesas lírios casablanca.


postado em 4 de novembro de 2014, categoria livros : , , , ,

dança celebratória whileawayana

ela agacha rapidamente e escuta. uma mão no ar, e pensativa. então: duas mãos. balança a cabeça. desliza um passo, arrastando um pé. e novamente. novamente. um fôlego extra e corre um pouco. aí, para. pensa um pouco. a dança celebratória whileawayana não é como a dança oriental e seus movimentos direcionados ao corpo, lufadas de ar quente exaladas pela dançarina, suas decorações por ângulos contraditórios (perna pra cima, joelho pra baixo, pés pra cima; um braço dobrado pra cima, o outro pra baixo). também não é nada como o anseio-por-vôo do balé ocidental, membros se atirando em curvas que aspiram o céu, o torso, um ponto matemático. se a dança indiana diz eu sou, se o ballet diz eu desejo, o que a dança whileawayana quer dizer?
ela diz eu acho. (a intelectualidade dessa empreitada impossível!)

she springs to her feet and listens. One hand up in the air, thinking. Then both hands up. She shakes her head. She takes a gliding step, dragging one foot. Then again. Again. She takes on some extra energy and runs a little bit. Then stops. She thinks a little bit. Whileawayan celebratory dancing is not like Eastern dancing with its motions in toward the body, its cushions of warm air exhaled by the dancer, its decorations by contradictory angles (leg up, knee down, foot up; one arm up-bent, the other arm down-bet). Nor is it at all like the yearning-for-flight of Western ballet, limbs shooting out in heaven-aspiring curves, the torso a mathematical point. If Indian dancing says I Am, if ballet says I Wish, what does the dance of Whileaway say?
It says I Guess. (The intellectuality of this impossible business!)

{joanna russ. the female man. londres: orion publishing group, 2010 (1975), p.100-1 (§5.14)}


postado em 29 de agosto de 2014, categoria livros : , , , ,

círculos ceifados, o terceiro homem

o livro de rodolfo caesar sobre sua música homônima {círculos ceifados, 7 letras, 2008} sofre justamente de academicismo: está a todo tempo defendendo-se, buscando aliados, justificando suas escolhas – como se houvesse um modo acadêmico sendo transgredido; como se o texto precisasse ser resguardado. mas nesse movimento, justamente esse modo é reforçado e recolocado a todo tempo. não que ele pretenda ser diferente, mas ouvindo numa ocasião acadêmica, muitos anos atrás (2004? ou ainda antes), a palestra equivalente, tinha a impressão viva de estar em presença do contrário – de uma rota para fora da universidade, estando dentro. hoje, fora, mesmo que goste da música e do livro, pesa-me o tom autoirônico, quiçá cínico.

o texto, portanto, deixa claro: não deve ter uma força que possa ser equivalente à da música; sua fabulação está entre aspas, como “fabulação”. não é como the third man, de erik bünger, palestra-vídeo que eu fiquei de traduzir para o português mas não o fiz.


postado em 27 de agosto de 2014, categoria livros, resenhas : , , , , ,

adília lopes, suas antologias

marco scarassati foi à portugal. pedi-lhe livros de adília lopes – a poeta portuguesa. trouxe-me uma antologia. eu já tinha uma, mas não a que ele trouxe. eu queria receber livros inteiros, separados, e agora tinha duas antologias. e não apenas isso, mas duas antologias cobrindo o mesmo período, de um jogo bastante perigoso (1985) a o regresso de chamilly (2000), embora, na edição portuguesa, irmã barata, irmã batata venha antes deste último, e na brasileira, depois (o que deixa-me a pergunta se irmã barata, irmã batata não foi incluído na brasileira por decisão de antólogo ou por pré-decisão de decisor de escopo cronológico).

a antiga antologia, antologia, minha desde antes de pedir a marco livros de adília lopes, tem posfácio de flora süssekind. a segunda antologia, caras baratas, minha apenas depois dele não ter trazido livros separados e inteiros de adília lopes, tem posfácio de elfriede engelmayer. com as duas lado a lado, teria de encomendar a antologia quem vai casar com a poetisa?, com posfácio de valter hugo mãe, com vistas a completar a coleção.

em antologia e em caras baratas, há coisas que se repetem. repetem-se uma em outra e outra em uma, repetindo da antologia à caras baratas tanto quanto no sentido inverso, da caras baratas à antologia. nem tantas, mas, por exemplo, o final d’o regresso de chamilly e o fabuloso a sereia de pernas tortas, de a bela acordada. o maria cristina martins, que está inteiro na brasileira, tem todos seus trechos da portuguesa então repetidos na portuguesa, que aparecem na portuguesa e que são muitos mas não todos da brasileira, embora todos repetidos também na brasileira.

há ainda poemas que constam em nomes resumidos na brasileira e extensos na portuguesa. de florbela espanca espanca, só depois é só depois de ler, e a rapariga que é a rapariga que esperava muito, de a pão e água de colónia [neste livro há o (seguido de uma autobiografia sumária) que leva a um caso curioso; pois em justamente aforismos, de irmã barata, irmã batata, constam, 13 anos depois, as autobiografias sumárias de adília lopes 2 e 3, das quais copio abaixo a última (a terceira, não a segunda)]

Os meus gatos já deixaram há muito tempo de brincar com minhas baratas. A Ofélia tem 12 anos, seis meses e sete dias. Guizos, segundo o Dr. Morais, tem 9 anos. Entretanto gatos morreram, gatos desapareceram. Estou a escrever isto no computador e não sei do Guizos há três dias.

{Adília Lopes, Caras Baratas – Antologia. Lisboa, Relógio D’Água, 2004, p. 231.}


postado em 10 de agosto de 2014, categoria livros : , , , , , ,

as quatro irmãs

1. p.190.

Chegar ao governo e denunciar. Denunciar o quê, estava tudo denunciado.

2. p.324.

Acreditamos em tudo, somos incorrigíveis. Esperávamos até que os empreiteiros negassem a longa tradição de construírem o imediatamente obsoleto.

{ignácio de loyola brandão, não verás país nenhum, global editora, 17ª edição, 1990}


postado em 31 de julho de 2014, categoria excertos, livros : , , , , , , , , ,

congestionamento

1. há uma tirinha genial em que a solução para um congestionamento paralisador é cimentar por cima e começar de novo (eu não consegui encontrá-la e não sei o autor).

2. no romance distópico “não verás país nenhum”, loyola brandão apresenta uma situação ainda pior, uma avenida que acaba por se transformar em um imenso cemitério de carros:

– Quem ia pensar que um dia íamos nos sentar tranqüilos entre os carros, nesta estrada?
– Estão  aí, mortos. Quanta lata velha.
– Os carros ficaram parados dois anos em frente à minha casa.
– Você morava quase no centro. O meu bairro foi pouco afetado.
– Quase fiquei louco, Souza, naquela noite. Queria matar, pegar alguém. Como buzinavam, aceleravam. Podia ver o ar preto de fumaça. A maioria esgotou a gasolina e o álcool do tanque. Ninguém desligava o motor. Pela manhã, as pessoas continuavam dentro dos carros. Como se pertencessem a ele. Câmbio, volante, freio, condutor. Esperavam, não sei o quê.
– Na minha rua teve gente que não acreditou no noticiário, tirou o carro da garagem, pela manhã, e foi embora. Voltou a pé.
– Teve motorista que ficou uma semana, duas, sem abandonar o carro. De vez em quando batiam, pedindo para ir ao banheiro. Recusei, para todos. O que estavam pensando? Que fossem para suas casas. As famílias traziam mudas de roupas, café, comida. E o desespero quando souberam que não circulariam mais? Choravam diante do automóvel, inconsoláveis, lamentando como se fosse parente morto. Mulheres desmaiavam, histéricas.
– Tenho fotos dessas semanas. Principalmente dos rostos. Eles me interessavam mais que os carros bloqueados. Rostos patéticos, expressões perplexas. Como se tivessem sido postas ao mundo de repente. Não era ódio, raiva, irritação. Era derrota, tristeza, interrogação. Fotografei tanto olhar apalermado!
– Nos primeiros tempos, estranhei o silêncio. Foi então que reparei um zumbido permanente nos ouvidos. Até aqueles dias, não tinha notado. O médico disse que não tinha cura. Continua até hoje, me acostumei.

{ignácio de loyola brandão, não verás país nenhum, global editora, 17ª edição, 1990}


postado em , categoria excertos, livros : , , , ,

morte zero

ultramorte, megamorte, multimorte, nanomorte, nove mihões de maneiras de morrer (nine million ways to die); qual a morte mais mortal? mas não seria essa pergunta justamente descabida? pois não era a morte que estava do lado da diferença e se bifurcou, dando origem à vida, esta sim, com suas inúmeras variações de grau?

lendo land (the thirst for anihilation: georges bataille and virulent nihilism, routledge, 1992), capítulo 9, “abortando a raça humana”, são figurados outros tantos bergsonismos: matéria e espírito, natureza e cultura, caos e ordem, zero e plenitude, forças ativas e reativas, inorgânico e orgânico, guerra e indústria.

To set up the question of difference as a conflict between the one and the many is a massive strategic blunder – the Occident lost its way at this point – the real issue is not one or many, but many and zero. [147]

se esses dualismos remetem a monismos, esses monismos devem remeter ao grande e imenso zero (o próprio zero também), à diferença diferenciante.

{de um modo bastante ingênuo eu esperava que land fosse um deleuzeano que descontaminasse o deleuzianismo de seu bergsonismo}


postado em 16 de junho de 2014, categoria excertos, livros : , , , , , , , ,