positividade

tal como o infame personagem, jim aprendeu a ser positivo. inicialmente, apenas pensava em voz alta, sempre proferindo o que lhe ocorria. logo aprendido o operador da negação, passou a empregá-lo frequentemente. amadurecendo, aprendeu a inibir-se. isso é o que dizem que é pensar, auditou. e assim, nenhum som ocorreu. queriam que fosse menos negativo. a solução era então clara: inibir a disposição de falar em voz alta operadores de negação, quando tais disposições ocorressem. pois o melhor sim é a ausência do não. (não).


postado em 29 de janeiro de 2023, categoria histórias : , , ,

segredo

após inúmeras aventuras nosso herói é capturado. ele guarda o segredo, o qual o conhecimento nosso vilão tanto almeja. ocorre que, ao ser oferecido duas opções – revelá-lo e evitar o pior ou não revelá-lo e ver o pior acontecer, nosso herói recusa a falsa escolha. diz:

“o segredo é meu para guardar. tenho duas opções, guardá-lo ou não. se o guardo, cumpro minha função. se não, falho em minha missão. o resto é por sua conta. pois se você, desprezível que é, ameaça minha família, essa ameaça é sua a realizar. veja, vilão, que só a você cabe cumpri-la ou não, assumindo uma covardia ou outra, fazendo-se verdadeiramente vil ou admitindo se tratar de bravataria. sua vileza, afinal, não é de minha conta. e por mais que eu vá julgá-lo por suas ações, ainda assim elas são inteiramente suas.”

o herói, que acreditava na liberdade, dessa opinião não fazia segredo – a chantagem era apenas uma tentativa de transferir a culpa aos outros, mias um recalque dos fracos de espírito. resoluto, ele acreditava que segredos deveriam ser, antes de mais nada, promessas não cumpridas de revelação.


postado em 23 de junho de 2022, categoria histórias : , , ,

machado da restituição, harpa da perfeição

1. no poema medieval sir gawain e o cavaleiro verde, o cavaleiro verde é decapitado por sir gawain, com um golpe de machado. o machado, oferecido pelo próprio cavaleiro, estava afinal, imantado. ou é o que eu pensei – aparentemente era a cabeça que estava. de toda forma, melhor seria que o machado. machado da imolação desfeita.

2. o machado, com maior generalidade, poderia revocar os danos por ele causados. machado da restituição. e não que ele deixasse de os causar. mas garantiria uma recomposição imediata após avaria. em um mundo em que a necromancia estaria naturalmente interditada, ou em outro mais permissivo em que algum édito mágico é conjurado, poder-se-ia aproveitar da potestade do portentoso eixo de batalha para tentar infligir danos permanentemente mortais. nem sempre a restituição chega, afinal.

3. sir orfeo gostava de tocar sua harpa. pulemos sua história, a loucura e rapto da esposa, a abdicação do reino, a vida de ermitão, o feliz reencontro, a exibição dos dotes musicais ao vil monarca, a oportuna promessa, a reconquista da amada, a provação ao fiel servo, o desenlace afortunado. tudo isso nos parece formatado como tantas outras fábulas da antiguidade – justaposições de motivos, variações de combinações fortuitas.

4. acontece que, sua felicidade em jogo, apresentando-se sir orfeo ao soberano, talvez fosse melhor uma harpa enfeitiçada, a tocar a mais encantadora ode possível. mas como seria tal ode? aqui, se as palavras tecem louvores vagos e induzem apenas ao esfumaçado no imaginado, os sons teriam de ser, ainda assim, muito concretos, pois soando, seriam precisos e determinados. ou minto? pois no fundo o que soa pode ser o que é, mas o que se escuta não. aí, a imaginação voa e no mistério das avaliações, a música não é mais o percebido, mas que o percebido possa ser dito maravilhoso. a harpa da perfeição, entretanto, não tem cordas – sua música, inteira silêncio, faz-se dos sonhos de bem-aventurança daqueles que assim imaginam ouvi-los materializados. pois se a suprema glória é inaudível, ainda assim, o inaudível abre-nos ao experienciável.


postado em 10 de junho de 2022, categoria histórias : , , , ,

a dificuldade com o escovar os dentes

escovar os dentes não é apenas esfregar de um lado a outro um creme dentro da boca, enxaguar e expelir o composto. dizem os odontologistas, antes melhor seria gentilmente torcionar as cerdas, com um movimento levemente escavatório do pulso. quanto as pastas, muito se discute. há quem argumente que pela observada correlação entre a fluorificação da água e a diminuição de problemas dentários, não há porque insistir ainda mais em uma substância ambígua como o fluor, nas pastas – sua função já foi cumprida.

uma certa vez no banheiro, em casa, escova suiça e dentifrício inglês, em frente ao rosto e de repente há, em volta das cerdas laranjas, uma pequenina formiga. como ela foi parar aí? retiro-a gentilmente, colocando a na pia. já à noite, uma e depois outra formiguinha. retiro-as, inquieto. paro e olho. forço os olhos, nada. mas ao desistir, vejo mais uma. saiu de dentro da escova? não quero formigas nos meus dentes. pressiono as cerdas com o dedão, como quem vira um flip book; quero descobrir o que há dentro. desisto, ainda que desconfiado.

dia seguinte e antes de escovar cerro mais uma vez os olhos: agora vejo (será mesmo que vejo?) formigas ainda menores nas cerdas laranjas, pequenos pontos preto-translúcidos, movendo-se. como num sonho, onde aceito com conformismo o que me angustia, coloco a pasta. pode ser que elas queiram a pasta, são formiguinhas que anseiam pasta de dentes, e esta não tem fluor. a água, que talvez tenha fluor, as afasta. são sensíveis. mas o dentifrício, este não. só que agora vendo, não são bem formigas que saem de dentro da pasta, mas pequenas larvas, cuja quase-coloração tende mais ao branco. certo nojo, mas está explicado: as larvas perdem-se nas cerdas, as formigas vão até lá e ficam caçando-as, no mar laranja. branco e preto, caça e caçador, pasta e escova. a solução é simples. com o dedo e água, pressionar levemente cada dente e depois a gengiva e a língua, rotacionando o antebraço graciosamente. então, bochechar vigorosamente, sentindo a resistência de músculos pouco acionados, jogando de um lado a outro o bochecho e terminando com um gorgoleio barulhento e orgulhoso. ah, as maravilhas do enxaguamento bucal. quem nunca esqueceu a necessaire em uma viagem à praia. e no mar, diferentemente da piscina, não há adição controlada de cloro (se bem que, já que estamos aqui a comparar, devo dizer que a água do mar perde em muito para a das cachoeiras e que ambas não são cloradas; a das cachoeiras reviroga; a do mar não).

não obstante, três dias depois, cansado da duplicidade do toque, polpa do dedo e dente, compro uma outra escova e outra pasta, sem melhora no resultado. nem me presto a pensar o quão inflacionados andam os produtos importados, que deve haver sobretaxação em algum lugar ali. quando há puro desperdício é melhor nem perder tempo com computações que, no todo, só devem aumentar a irritação. e que raios de situação, estariam os depósitos de produtos contaminados? pego o telefone, vou primeiro perguntar aos amigos. talvez um e-mail, geral em cc: “ajuda: caso do dentifrício”. mas será? o telefone é mais seguro – vai que estou a enlouquecer.

abandono o aparelho, entretanto. pois vejo cair nele as pequenas linhas ondulantes brancas. só podem ter saído de minha boca. por todo esse tempo, seria então isso, eu, um larvário bucal? um castigo pela força aplicada quando da escovação – de alguma forma, concussões abrindo caminho às infecção dessas estranhas minhocas? teriam os zigue-zagues da raspagem preparado, contra as convoluções normalmente recomendadas, um terreno propício a essa estranha situação? “pelo menos minha gengiva não está se automascando”, penso. preciso de cloro. se minha boca virar uma piscina…

(pensando bem, sempre achei o fluor um tanto suspeito. seria o flúor uma entidade coletiva alienígena em processo de dessimbiose?)


postado em 1 de novembro de 2018, categoria histórias : , , , , ,

duas posições sensatas

1. sou ateu, exceto com relação aos guardas-chuvas. pois em alguma zona recôndita de um mundo espiritual, não se sabe se acessível, o deus dos guarda-chuvas junta todos os guarda-chuvas perdidos e quebrados, amontoando uma monumental pilha colossal de para-águas e sombrinhas; em um lugar sempre nublado, em que nunca chove.

2. ele era monarquista, mas partidário do ramo de vassouras. de modo que, instituído o regime, o primeiro decreto deveria exilar os orléans e bragança de petrópolis, seguindo-se a este as devidas denúncias e perseguições aos apoiadores de pedro carlos, maria da glória, afonso duarte, manuel álvaro, cristina maria e francisco humberto, conspiradores contra a pátria, isto é, usurpadores fracassados da justa sucessão ao trono.


postado em 3 de outubro de 2018, categoria histórias : , , , , ,

a verdadeira história de odisseu e as sereias

diz kafka que odisseu só se salvara porque achava que as sereias cantavam e ele e sua tripulação não as ouvia, quando, na verdade, serias não cantam: são seres infrasônicos. pois, ao ajustar a rota em direção aos rochedos errantes, de última hora, também havia encerado os ouvidos, evitando a estratégia do mastro, que havia de falhar. as serias, então, de certo só metaforicamente entoavam doces cânticos, pois eram muito belas e evidentemente desejáveis aos marinheiros solitários, cansados da pederestia. entretanto, sua principal arma não era essa: como ficavam quietas e todos queriam ouvi-las, as embarcações aproximavam-se perigosamente, com uma quietude tensa e desejosa. a música que precedia o banquete era feita de expectativa, transbordada de escutas e só rompida pelos horripilantes gritos dos navegantes, quando da refeição das ninfas.

colocando cera ao ouvido, era a curiosidade que o ingênuo/engenhoso odisseu tapava.


postado em 5 de fevereiro de 2017, categoria histórias : , , , , ,

o presente do grou

a muito tempo atrás, mas nem tanto, um grou estava com a perna quebrada. um velho o achou e socorreu, levando o para casa. então, ele e sua esposa o alimentaram e cuidaram de seu ferimento, até que este melhorasse. para agradecer a hospitalidade, antes de partir, o grou deixou como presente um pote com suas fezes.

(aqui, a história é outra pois) os velhos, felizes ao ver o cocô e não mais o pássaro, logo pensaram: sim, é o segredo da juventude, o cocô do grou. mas como durante toda a estadia o grou não conversara nada com eles, e sabe-se que grous mágicos falam, decerto sabia que esperávamos isso dele – um cocô mágico, para passar-nos a cara. ao diferenciar retribuição de recompensa, deu nos um cocô ruim, sem magia, que não vale de nada esfregar no rosto.

então, rapidamente decidiram levar o pote para o terraço e o secaram. em seguida, fizeram do estrume seco um perfume. envasaram-no em frascos, com os dizeres “elixir da juventude”, e puseram-se a vende-los.

como venderam muito, gastaram muito. mas não satisfeitos, logo adotaram um filho, pois sabiam que a herança ia ser farta.


postado em 29 de janeiro de 2017, categoria histórias : , , , , , ,

da verdade

houve natal, e depois dele, ano novo. foram-se os dias. chegou a páscoa tanto quanto passou. houve um novo ano novo. todas tentativas vãs, antigas, inoperantes.

[comunicado no. 6, do undo, grande no, perpétuo ia, 01 de abril de 2013 do mundo]


postado em 1 de abril de 2013, categoria histórias : ,