a dificuldade de dizer não

sarah gottlieb escreveu um belo e pequeno texto sobre tabus que atrapalham uma ética quanto à contenção do sexual indevido dentro da prática do contato improvisação. um deles envolve a dificuldade de dizer não, ou seja: o mito de que dizer não é fácil. ao ler, além de concordar, não pude deixar de comparar com a minha vivência diária, como sofredor de misofonia (irritação crônica com certos pequenos barulhos de proveniência humana). pois, em âmbito diferente e com as devidas modificações, ainda assim reconheço o banho de emoções que tomo ao reclamar com as pessoas sobre os seus comportamentos sonoros (a principal ocorrência é o pedido para que usuários de telefone celular utilizem o aparelho com fones de ouvido ou então desliguem o som deste). com isso quero dizer apenas: o mito é aplicável a outros âmbitos, e a descrição abaixo pode servir de guia para a construção de outros relatos. de toda forma, segue minha tradução das etapas envolvidas, de parar de dançar até dizer não e depois.

Primeiro, tenho que reconhecer que estou me sentindo desconfortável. Como fui criada como mulher, nutrindo a expectativa de que devesse me adaptar emocionalmente com facilidade e priorizar os outros, eu normalmente ignoro esse sentimento algumas vezes antes de aceitar que ele é forte o suficiente para merecer atenção.

Então, para ter certeza, tenho de checar se a fonte do meu desconforto é outra pessoa, e não coisa da minha cabeça ou disposição.

Então, preencho-me de uma sensação mista de decepção, medo e ansiedade (assim como medo, raiva ou qualquer outro coquetel de emoções intensas que possam estar relacionadas aos detalhes específicos da experiência atual, traumas passados, alguma resposta a outros fatores ambientais etc.).

Em seguida, tenho que me acalmar usando estratégias desenvolvidas ao longo de uma vida a defender-se de avanços sexuais indesejados. Eu me encarrego de avaliar a situação com cuidado, identificando a natureza da pressão que estou enfrentando. Relembro que não preciso entender completamente minha experiência ou justifica-la, e que o mero fato de estar a sentir uma transgressão a torna válida. Relembro que mereço detê-la imediatamente.

Nesta fase, eu também realizo muitos cuidados, subconscientemente. Fico preocupado com a outra pessoa, sinto-me culpada pela possibilidade de que elas se sintam desconfortáveis, atacadas ou ofendidas. Experiencio também medo de uma reação, raiva ou violência. Em uma fração de segundo, estou analisando o quão segura me sinto, considerando minhas opções para escapar e / ou mudar a situação, e tomando uma decisão sobre como e o que dizer para que eu possa restabelecer meu próprio conforto e bem-estar com o resultado menos violento.

Então eu preciso encontrar minha voz. Eu preciso respirar fundo. Eu preciso realmente falar. Eu sempre digo menos do que sinto. Eu sempre minimizo meu desconforto, peço desculpas ou comunico que não é culpa da outra pessoa, mesmo que absolutamente seja.

E mesmo que tudo corra bem e minha mensagem seja imediatamente ouvida, preciso proteger meu coração, muito rústico, e procurar uma maneira segura de sair dessa experiência. Preciso encontrar uma pessoa de segurança para sentar ao lado, pessoa que, dado o contexto, pode ou não estar presente. Eu preciso acalmar meu sistema nervoso e me recuperar de um estado muito agitado. Ter que definir limites verbais contra transgressões sexuais é muito perturbador, e a adrenalina pode me derrubar por dias.

Esse processo inteiro pode levar 10 segundos.

em um dos encontros de estudos sobre contato improvisação que a renata campos está conduzindo, discutimos a partir desse texto. lá surgiu a questão sobre a existência de alguma de melhorar a lida com o desconforto de dizer não, de reclamar, de trazer à tona. alguma forma de diminuir a dor de fazê-lo, de quebrar a resistência que temos a fazê-lo, em diferentes níveis e diferentes situações. no sentido de: existem exercícios possíveis para tal? a conversa sobre o assunto é certamente um deles. mas há outros? (por exemplo, alguma técnica de psicologia prática).


postado em 23 de maio de 2020, categoria comentários, dança : , , , ,

ao invés de adiar, viver o fim do mundo

“então, talvez o que a gente tenha de fazer é um paraquedas. não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos.” diz krenak num livrinho com 3 palestras curtas (ideias para adiar o fim do mundo). é uma mensagem de que é preciso viver bem o fim do mundo, passar por ele bem, ou melhor, perdurar e conviver com ele. porque um fim do mundo da civilização é necessário, mas há uma tragédia dentro dele que deve ser evitada, que é a tragédia da vida mal vivida, enquanto esse fim acontece.

apesar dos tons eminentemente cristãos, poderíamos dizer “apocalipse, não fim do mundo”. isto é, desvelamento, revelação. mas, como é viver dentro do desvelamento, da revelação? talvez seja como cair.


postado em 9 de maio de 2020, categoria comentários, livros : , ,

reuniões e encontros virtuais

1. creio que a maioria das pessoas considera que reuniões e encontros virtuais, meetings and hangouts, pertencem às categorias das reuniões e dos encontros.

2. assim, convém não apenas agir de acordo, segundo as normas de cada uma dessas situações sociais, mas vestir-se de acordo.

3. há então a vantagem de não estar semi-nu, numa roupa confortável demais, ou pelado, ou usando algo plenamente inapropriado (há fetiches da solidão, como por exemplo usar apenas cueca e camiseta, de mesma cor). esta vantagem é que colocar roupas normais (de reunião ou de encontro) passa a ter uma carga ritualística.

4. de modo que se torna possível estar em casa “sem estar em casa”.

5. e se todos estão assim “fora de casa”, nem por isso estão uns nas casas dos outros, ou em um laboratório universitário, ou em um bar sem televisão, ou um centro cultural com cinema.

6. não que não se possam fazer reuniões e encontros em casa. para os quais valeriam (3) e (4), de toda forma, mas não inteiramente (5).


postado em 25 de abril de 2020, categoria comentários : , , , ,

observações cotidianas #1

1. a única parte não comestível da maçã é o cabo.

2. o que chamamos de presunto é um apresuntado. o que costumava ser chamado de cerveja era um acervejado.

3. a melhor mostarda é belga. da região de flandres. a boa mostarda, o bom presunto, o bom café, o bom azeite e a boa cerveja levam a um caminho sem volta (a point of no return).

4. embora escovar os dentes seja fastidioso, a recompensa é reconfortante. pois nada melhor do que não passar pelo pior. e não sentir que não se escovou os dentes é um efeito dessa estirpe. (como em outras atividades, limpeza vicia.)

5. muita gente finge não saber, mas o banho deve ser tomado desaquecido. como atividade funcional que é, o papel da água quente seria apenas aquele de um hedonismo raso. entretanto, o que seria a mera adição de um prazerzinho a algo em si insípido, mascara a neutralidade da atividade, e leva a comparações ridículas e inadequadas, como aquelas para com as atividades alimentícias. e daí todo o propósito já se encontra desvirtuado. pessoas começam a falar em dificuldades, em falta de coragem, em frio. um conselho: inspire; com a respiração presa, lava-se um membro, para só depois, fora da água, expirar. repita essa operação até que ela não seja mais necessária. corolário: nunca corte o cabelo enquanto toma o banho.


postado em 7 de março de 2020, categoria comentários : , , , , ,

o ressentimento contra o artístico

esses dias perguntei a uma colega se as mesmas pessoas que atribuíam um dom, uma habilidade inata para o fazer artístico, eram as mesmas que pechinchavam e pagavam mal. minha intuição, nesse caso correta, era de que sim. atribuir um dom ajuda a retirar a prática alvo da esfera do “trabalho propriamente dito”. assim, afasta-se a atividade que envolve o artístico como sendo de outro tipo. é uma atividade significativa, em que o fazer bem feito importa muito; ela promove a satisfação pelo resultado de seu esforço e possibilita o próprio fazedor a ter prazer enquanto a pratica.

por essas qualidades seria estranho que um tal tipo de atividade fosse possível a todos, daí que devesse ser um dom. e seria também estranho que fosse bem remunerada, daí a necessidade de pagar mal. pois imaginem se um trabalho pudesse ser significativo e prazeiroso e ainda assim ser um trabalho propriamente dito. é preciso que no artístico só alguns indivíduos sejam qualificados, e de modo que todos os que os admiram não possam pensar-se em mesma posição. e também que tenham remuneração baixa, dado que já tem o privilégio de fazer algo que possui sentido e provoca prazer ou ainda contribui para o bem.

de fato, a definição do trabalho propriamente dito mais atual não envolve de modo algum a ideia de dom, mas a fatalidade de ter de aprender algo tortuosamente, em partes. diferentemente do artístico, entretanto, a utilidade desse algo é muitas vezes restrita, sua significação não atraente, e a experiência de seus resultados pouco benéfica. é comum que a recompensa seja quase que exclusivamente o retorno financeiro, o qual justificaria o sentimento de inutilidade ou falta de propósito, ou lavaria a alma daqueles que estão preocupados com estar promovendo o mal e a má vida.

e quando não há uma ponta de admiração, que levanta a postulação da ideia de dom, a inveja ainda investe em outras formas, como a ideia de vagabundagem e mamata: não estar perdendo a vida em um trabalho maçante e pouco relevante – vagabundagem. conseguir dinheiro para realizar trabalhos em que a motivação é pessoal, interna – mamata. e assim a má consciência dos que têm uma vida ruim deve sempre combater, admirando ou não, a boa vida, tornando a boa vida pobre, já que espiritualmente esta não é miserável.

david graeber, no seu último livro, tratou em um belo capítulo de ressentimentos desse tipo, mostrando que são muito mais generalizados do que pareceria a princípio. e como materializam-se em cargos de gerência, administração intermediária, formulários e intermediações burocráticas. resenhei o mesmo aqui. é interessante pensar como os professores, além dos artistas, são alvo da má consciência. não por vias do dom, mas por serem altruístas num mundo em que o retorno financeiro do assalariado constrói-se contra o altruísmo. nessa lógica, os professores do ensino fundamental devem ser relegados a um sofrimento franciscano. provocam a raiva daqueles que nos lembram que trabalhar pode ser motivado por ajudar os outros, ao máximo de nossas possibilidades.


postado em 14 de fevereiro de 2020, categoria comentários : , , , , ,

deus e as paredes

De modo a podermos corrigir tão falsa opinião observaremos que não há nenhuma relação necessária entre o recipiente e o corpo nele contido, mas que essa relação é absolutamente necessária entre a figura côncava do recipiente e a extensão compreendida nesta concavidade, e assim tanto poderemos conceber uma montanha sem vale do que semelhante concavidade sem a extensão contida nela, ou esta extensão sem qualquer coisa extensa, uma vez que o nada – como já observamos várias vezes – não pode ter extensão. É por isso que se nos perguntassem o que aconteceria se Deus retirasse qualquer corpo que está num recipiente sem permitir que outro aí entrasse, responderíamos que as suas paredes [se aproximariam tanto que] imediatamente se tocariam.

[Descartes, princípios de filosofia, II. §18]

descartes fala do caso do copo, mas permitamo-nos reter agora apenas a sua sugestão quanto a paredes e observemos as paredes de uma sala. é certo que não há um nada a preencher o espaço interior, mas sim um algo, o ar, matéria rarefeita mas perfeitamente volumétrica. mas então eis que surge a misteriosa atração e sensualidade do ângulo entre duas paredes.* como o vácuo é logicamente impossível, elaboramos uma hipótese para explicá-la. talvez as imperfeições nos deslocamentos de ar no recinto constranjam deus a aqui e ali, levemente e no entanto, firmemente, em sutileza geométrica, a aproximar as paredes e então separá-las. pois como explicar esses devaneios que temos, ao fixar o olhar nestas arestas? certamente quanto ao copo, por seu pequeno tamanho e circularidade, o manipulamos, insuspeitos. mas uma sala é grande o suficiente, e seus lados costumam organizar-se em ângulos pronunciados, quando não simplesmente retos. aproximamos os ouvidos. com um pouco de imaginação:

Acima e abaixo. Clici-clic. Clici-clic. Abaixo e acima clici-clic. Clici-clic. Cliciclic abaixo e abaixo. Clici-clic. Clici-clic. Clici-clic acima e acima. (…) Quando suas paredes ascendiam e separavam-se desta forma, elas faziam uma espécie de som de mola sinuoso clici-clic. (…) De vez em quando as quatro paredes ascenderiam. De vez em quando as quatro paredes se ergueriam um pouco e separariam. De vez em quando as paredes se levantariam um pouco e separar-se-iam do chão. De vez em quando as quatro paredes dessa sala erguer-se-iam lentamente e separar-se-iam do chão. E depois de alguns segundos, lentamente abaixar-se-iam de volta ao chão de novo. (…) As paredes estariam clici-clicando acima e abaixo, enquanto ele contava todas as suas implicações novamente e de novo. Acima e abaixo. Clici-clic.Clici-clic. Abaixo e acima clici-clic.

[GX Jupitter-Larsen, Adventure on the High Seas, p. 120, 127, 131]

(*) vide ballard, athrocity exhibition.


postado em 14 de dezembro de 2019, categoria comentários : , , , ,

culinária

1. coloquei hortelã ao invés de manjericão. “por que você fez isso?” eu substituí um item por outro.

2. pra fazer homus doce é trocar tahine por pasta de amendoim e azeite por mel. ao ser perguntado, de novo, a resposta envolve a ideia de substituição: eu só troquei “salgado” por “doce”.

3. a soma de duas temperaturas dá o mesmo valor que uma outra temperatura, mas não a mesma temperatura.

4. se culinária fosse uma arte experimental, diríamos: daqui a 10 anos ele começará a ter uma culinária própria.

5. mas não seria meu caso.


postado em 13 de novembro de 2019, categoria comentários : , , ,

memética: política e extração do café

ancap é “como pagar o preço mais absurdo e ter um produto de qualidade bosta” (vulgo, o que o capitalismo faz por nós – e isso sem falar no lixo). esquerda liberal é “como queimar seu café, se ele for um café bom”. maoísmo é bom, mas já viu o preço da porcaria do papel da chemex? e sim, é bom ter mais gente na sala. anarquismo japonês é o que queremos. hario contra o sistema. hoxhaista, cafeinado e sujo, como a boa burocracia, dispersa e sacana (stalinismo? perguntem-me o que fiz hoje na municipalidade). liberal é ok, todos nós precisamos de vez em quando acreditar na ideia (ilusória) de indivíduo; mas ter em casa não né.é como achar que um indivíduo vence na vida e… marxista-leninista  lembra a fila de pão e você até compra um grão que já vem moído, por preguiça. mas enfim, e o aeropress? corrigindo o hoxhaismo e se aproximando à agência, mas sem o eu do indivíduo.


postado em 12 de julho de 2019, categoria comentários : , , ,

não necessariamente simples

a arte sonora e a arte conceitual não precisam ser simples. a simplicidade não é exigência para consistência artística nem para existência conceitual. você pode ter de explicar a ideia de algo conceitual em várias páginas, ao invés de em um breve parágrafo. pode haver uma constelação conceitual, um arquipélago, ao invés de uma unidade isolada. e não é por que há uma relação de elementos intrincados que algo deixa de ser arte sonora e vira música. “a partir daqui, me perco, então só escuto”. talvez por esse efeito, em que o inteligível dá lugar à experiência estética, ao recusar o enigma, tenha-se buscado o pontual, sóbrio, o anedótico, o criptografado, o abstêmio, íntegro, elementar… contra isso, uma arte de detetive, e que usa os sentidos como tema para as elaborações da ideia e vice versa. então, contra meramente fornecer uma chave que bastaria para resolver a interpretação e uma limpidez que resolveria a fruição, movendo do estético e em parte o anulando, em direção ao conceitual.


postado em 17 de junho de 2019, categoria comentários : , , ,

ideinha

chamo de ideinha algo que poderia ser bom mas é ruim (e sempre será).


postado em 13 de junho de 2019, categoria comentários : , , , ,