o princípio da amizade

é conhecimento tácito, dentro de cenas artísticas amadoras, que um artista que se apresenta no mesmo dia que outro assiste ao colega. invoquei tal injunção outro dia como “o princípio da amizade”, embora em seguida, para obter algum efeito cômico, tenha feito uma explicação que envolvia mais a noção de caridade: um músico sofre ouvir a música do outro. estávamos nos perguntando se deveríamos começar e eu comentei que faltava chegar o pessoal que ia tocar depois. haviam saído, mas logo chegaram. de todo modo, pude pensar um pouco sobre isso: a diferença entre caridade e amizade. o princípio, afinal, era realmente um de caridade. a amizade, eventualmente produzida, é algo que pode ou não florescer dali. provavelmente por isso que minha invocação tenha sido engraçada, mas não a explicação que seguiu.


postado em 25 de março de 2024, categoria comentários : , ,

adeus 2023

trabalhar em uma tese de doutorado realmente afetou meu engajamento blogueiro; não me despedi de 2021 nem de 2022. despeço-me de 2023 com apenas 10 postagens no blogue principal (contando um comentário sobre como uma tese se desdobra inadvertidamente; um outro sobre um assunto da tese – os indiscerníveis, embora sob o ponto de vista mais relaxado da confeitaria; minha apreciação de steppenwolf, do hesse; uma reflexão sobre um concerto de 20 anos atrás em que bati palmas na hora errada). de modo que é de bom tom dizer que terminei-a (a tese), realizando a defesa em julho e o depósito final em outubro. “a música como arte: significação musical e a ontologia da obra de arte de Arthur C. Danto” pode ser acessada no repositório da UFMG. ademais um ensaio que acabou ficando de fora, comentando um pouco também sobre o trabalho da rrayen e do marco scarassatti, virou um capítulo de livro; outro, em cima da noção de modos de presença do rodrigo duarte, virou outro.

o blog 馬鹿, coitado, foi completamente abandonado. em 2022, entretanto, houve vários comentários, alguns interessantes, como sobre um certo prometeismo no anime bna, do imaishi; considerações metodológicas a partir de um filme de jacques tatit; uma apreciação generosa do matrix 4. em 2021, uma defesa do livro dos irmãos strugatsky contra o filme stalker, do tarkowsky; um texto-resumo apaixonado do genial episódio 1 do anime shin mazinger z.

e já que mencionei postagens dos dois anos que estive em falta, faço uma seleção de meu blogue normal, em 2022: teste da copa comenta sobre como a ideia do cancelamento não funciona com pessoas poderosas (neymar, por exemplo); capivara de espinoza se posiciona contra os arroubos perspectivistas (quanto à determinação da identidade); segredo critica um tropo comum do heroísmo – a escolha infernal; machado da restituição e harpa da perfeição é um belo texto sobre equipamentos mágicos. e em 2021: torrada, elaborando sobre ter e comer o bolo; assinamento, o contrário de cancelamento.

aproveitando o limbo acadêmico na segunda parte de 2023, lancei um pequeno álbum de paródias musicais concebidas em 2007 (incluindo o-bla-di o-bla-da), resgatando também o projeto da época de trabalhar a partir de músicas dos beatles, ao piano (mais sobre isso ano nesse ano). com bizzotto e scarassatti, gravamos ao vivo na casa fúnebre. o trio QI, além quartas de improviso temporada 16 se apresentou também no praça 6, que continua forte, duas vezes por ano. não obstante, meu trabalho mais importante mesmo foi lançado no final de 2022: palavra-palavra traz várias reordenações em ordem alfabética de clássicos do brasil (como faroeste caboclo, geni e o zepelim, diário de um detento, o hino com a fafá de belém…). (teve também o projeto insano de masterizar as 107 faixas da coletânea ceasefire now, em pról de uma associação de mulheres da região de gaza, como maneira de ajudar os selos envolvidos a ajudar essas mulheres)

dei duas oficinas do jogo musical cobra, relembrando os idos de 2014, quando o aprendi com o coletivo d’istante. encerramos no QI178, na casa fúnebre; o outro ocorreu na UFMG, como professor convidado de uma disciplina. toquei duas vezes na neu niterói, um dos mais ativos espaços da cena de música experimental carioca atual. a primeira com projeção ao vivo por tetsuya maruyama, a segunda fazendo uma versão ao vivo de meu vídeo dois improvisos duplos, de 2021. repeti esse show no lugar sem nome, em sampa, novo espaço sob o mário. em fevereiro já tinha estado por lá, em residência com o trio infinito menos e mostrando vídeo bug biziu, feito com a carol (ainda não publicamos na íntegra). aliás, em maio, mudei para morar com ela. demos voltas na pampulha de bicicleta. jogamos ping pong frequentemente (outros QIs aconteceram – houve um envolvendo ping pong inclusive, em colaboração com o música quente). organizei um ou outro boteco ruído, continuando a colaboração com a kasa invisível. continuei com meu grupo de estudos quinzenal de filosofia da música. continuei jogando futebol semanalmente aos domingos de manhã. continuei estudando japonês: consegui conversar com alguns nativos, no ICA aqui em BH – congresso internacional de estética.

li 83 livros, ou devo dizer – apreciei? (uma parte deles foi no formato áudio – aderi totalmente a esse tipo de fruição – e dá para acompanhar a guerra dos tronos, durante faxinas e caminhadas). o que mais gostei, de longe, foi blue mars (marte azul), do stanley kim-robinson. a trilogia de marte tomou o lugar, aliás, de melhor série de livros que já li (li green mars em 2022); a origem das espécies do darwin realmente vale a pena, mesmo para os ignorantes em biologia, como eu; tomasello foi o cientista da vez, dá vontade de ler mais; brandom e sellars são autores do coração; o ensaio do mishima brilha, apesar do conteúdo altamente duvidoso; bregman continua fofo e interessante; e forever peace é o melhor de handelman – ficção militar por pessoas com experiência militar tem realmente outro caráter – mais deliberação e reuniões, menos tiros e bravataria. dos álbuns e séries que recomendo acho que vocês terão notícia em breve.


postado em 29 de janeiro de 2024, categoria comentários : , , ,

ainda sobre reggae

o que eu não gosto dessa coisa do adams é que eu realmente não consigo pensar alguém dizendo “meu compositor predileto é john adams”
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tipo, por qual motivo alguém preferiria adams a bartók
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acho que as pessoas deveriam ler adams como o momento em que música clássica contemporânea se confirma como um gênero
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e por isso abdica de ser um bastião histórico
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de qualquer tipo de desenvolvimento
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assim, conciliamos as duas posições
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adams continua sendo “algo” ligado a uma ideia de “pós-modernismo”, só a aplicação que se torna local
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ele confirma que uma região da música contemporânea virou reggae e que de lá não devemos procurar para falar sobre características “críticas” da música


postado em 19 de fevereiro de 2023, categoria comentários : , , , ,

esculpir com fogo

a tese é como a hidra. e se o prazo que se aproxima lança-se como o fogo que cauteriza a proliferação, é no embate que, decepando da forma que podemos, acabamos ao final com um oponente diferente.


postado em 30 de janeiro de 2023, categoria comentários : , ,

música e palavra #1

existe algo de verdadeiramente desconcertante no fato de que, em geral, tudo fica mais arrastado em óperas e não apenas somente mais lento. concentrando-nos nas frases e deixando de lado a ação, depois de ver como la bohème de puccini, a excessão da primeira cena, acaba por assassinar o espírito leve e sagaz da obra original de murger (scènes de la vie bohème), perguntamo-nos, por contraposição, se não seria o caso da música possibilitar uma maior velocidade na transmissão de informações. há algo disso em alguns raps, mas é notório que os refrões cantados desaceleram tudo, investem em sentimento. e para ser justo com puccini, ele tenta compensar o ritmo retesado com incursões polifônicas onde dois diálogos ocorrem ao mesmo tempo.

(lembro vagamente de alguma cena de ópera de mozart onde há quatro linhas de texto simultâneas, que garantiriam sua inteligibilidade por ser música. mas ser inteligível como contraponto musical, entre quatro linhas melódicas, não é ainda transmitir a informação dos textos)


postado em 27 de janeiro de 2023, categoria comentários : , , , , ,

teste da copa

a copa do mundo testa a hipótese de que cancelamento é uma questão de pequenos poderes.


postado em 1 de dezembro de 2022, categoria comentários : , , , , , , ,

o erro é dos outros

é comum, em apresentações de edições acadêmicas, que o autor revele ter sido auxiliado por muitos e seus apontamentos valiosos. “as falhas, entretanto, são todas de minha responsabilidade”, dirá em seguida, eximindo seus interlocutores de qualquer imputação possível de má influência. “os erros são meus”, entretanto, pode significar que, se há algo de novo ali, é na parte nova autoral que se deve buscar o que não procede. contribuir de modo inovativo e certeiro aconteceria apenas no trabalho de outrém, quando na função de conselheiro.

de minha parte, quando estou fazendo colagens musicais, digo exatamente o contrário. ali, não basta garantir ter feito meu melhor, mas sim ter feito o melhor possível. assim, as eventuais falhas serão todas de responsabilidade dos artistas sampleados e falarão sobre eles e não sobre mim, ou sobre a colagem. afinal, não se trata de meta-colagem, mas de metalinguagem (ou seja, não se trata de meta-metalinguagem). os acertos são de minha responsabilidade, enquanto os erros são todos culpa dos outros.

(meu álbum palavra palavra deve sair em breve, pelo estranhas ocupações. subi minha versão de rosa, de pixinguinha, em meu bandcamp, como tira-gosto)


postado em 7 de setembro de 2022, categoria comentários, música : , , , ,

masque-z vous

na novela suprema da paranóia, os três estigmas de palmer eldritch, superando até mesmo o homem duplo, do mesmo philip k. dick, a droga chew-z alcança os pícaros da bad trip total ao lançar certos usuários em um espaço-tempo refeito e labiríntico cujas imagens retidas então populam a existência sóbria como efeitos colaterais, tornando igualmente labiríntica a determinação do que é real. afinal, estamos ou não ainda mergulhados no mundo alucinatório proporcionado pela mastigação da substância?

mas se palmer eldritch e sua aparência grotesca, mais os mostruosos glucks, não comparecessem. e se, ao invés de remeter a bifurcações de nossa vida, quando já tomamos uma decisão mas talvez tomássemos a outra, uma outra droga nos transportasse para uma realidade exatamente idêntica à nossa, mas ilusória? e fosse progressivamente difícil distinguir então se algo aconteceu aqui ou ali, da mesma forma que determinar qual das duas é de fato àquela em que há consequências materiais, se é que são apenas duas realidades e se é que existam consequências materiais, ou se essa materialidade não é ideal, efetiva nos n-mundos que são o labirinto do mesmo mundo vivido fenomenológico. fiquei imaginando que esse jogo de indiscerníveis e a confusão resultante nesse cubismo deveria ser contada em primeira pessoa, em um processo gradual de dissolução da confiança na consistência de um real que, entretanto, recusa a sair do banal.


postado em 10 de dezembro de 2021, categoria comentários : , , , ,

estou sentado em uma sala

como muitos outros, fiquei completamente fascinado quando escutei i am sitting in a room, tanto pela sonoridade, desenvolvida aos poucos, em processo lento, quanto pelo que estava ali envolvido (uma maneira muito poética de trabalhar musicalmente a ideia de que uma sala tem uma acústica específica). tanto que, quando dava aulas de arte sonora, mas até mesmo de criação e registro sonoro, sempre mostrava aos alunos da oi kabum! essa peça. e em seguida experimentávamos o processo: gravar uma fala ou alguns sons em uma sala. tocar essa gravação na mesma sala e gravá-la de novo. e novamente e assim por diante. presenciar o mistério da filtragem e reforço sucessivo de certas frequências até que a sala parecesse usar nosso estímulo inicial para expressar suas preferências, seu ser sonoro.

esses dias estava pensando sobre como essa música pode de fato ser dita canônica, dentro do âmbito da música experimental. por ser desconhecido no mundo afora, não fui convidado para a comemoração de 90 anos de alvin lucier, em que 90 artistas diferentes executavam a obra em diferentes espaços e condições. mas já tinha construído uma versão, em 2016, pensando em homenagear esse incansável explorador sonoro, falecido hoje (01 de dezembro de 2021).

a ideia era que, dada a força de i am sitting in a room, ligada às versões executadas pelo próprio lucier, haveria em toda sala, agora ligada à sua acústica, um potencial-lucier: o conjunto de frequências articuladas a partir do processo reiterativo de lucier como aspecto virtual para qualquer sala. e de certo modo, isso significava para mim que se filtrássemos a expressão de cada sala, sucessivamente e gradativamente, de toda sua força expressiva, o que sobraria ao final seria a voz do bom velhote.


postado em 1 de dezembro de 2021, categoria comentários, música : , , ,

a vida secreta das plantas

uns dias atrás gravei um pequeno vídeo filmando algumas plantas que comecei a cultivar aqui em casa durante a quarentena. na cartela de apresentação, exibo o título: “plantas crescendo”. a ideia é que matthias koole improvise musicalmente enquanto assiste um pedacinho desse processo, na verdade invisível. a gravação foi feita para a temporada 13 das quartas de improviso.

antes disso a carolina botura estava me falando sobre a conexão de seu novo trabalho artístico com as plantas (mais sobre isso em breve) e eu fiquei matutando o que eu acho sobre as elas. e cheguei à conclusão que o que me fascina tem a ver com a temporalidade, que na minha relação com as plantas o que presencio é seu lento crescimento. este é invisível, embora existam, na rotina, indícios aqui e ali; o processo é suficientemente lento para que minha memória não retenha os diferentes estados e eu não consiga apreender as diferenças entre um estado e outro. até que… ocorra uma micro-ruptura. e de-repente há uma mudança dentro de um “nada acontece”.

com as flores há uma condensação de energia e também de tempo: as coisas se ajustam mais à escala do cotidiano humano, mas em meio à um regime de atenção que dispenso às plantas, uma estrutura do “já passou” e do efêmero se estabelece. a flor mal floresce já fenece, a flor que estaria conectada a essa estética do crescimento mínimo e contínuo.


postado em 19 de julho de 2021, categoria comentários : , , ,