Há no demoníaco uma mistura interessante de erotismo e violência, em que o sexo seduz rumo à morte. No seu livro “O Erotismo”, Georges Bataille diz:
A sexualidade e a morte são apenas os momentos agudos de uma festa que a natureza celebra com a multidão inesgotável dos seres; uma e outra têm o sentido do desperdício ilimitado a que a natureza procede contrariando o desejo de durar, que é próprio a cada ser.
O autor fala da reprodução como aquilo que estende o aniquilamento, pois a morte de uma geração exige uma geração nova, a dar continuidade a esse impulso. Mas o homem teria além do impulso, o erotismo, isto é, uma forma de aprovar a vida, quando ela circunda-se de morte. Para Bataille, isso relaciona-se com o fato de por sermos descontínuos, individuados, e conscientes, individualizados, termos uma nostalgia de uma continuidade perdida. Mas essa continuidade se daria apenas na morte [estar com todos e tudo na morte].
O erotismo coloca em questão nosso ser, mas só aponta para a morte como uma direção, como um atrator e portanto, como um ponto inatingível. Afinal, na morte, justamente, não estamos em vida. Nos perdemos demais; lá é o limite do possível. Essa tendência erótica é entretanto, controlada. A vida social introduz uma subordinação ao trabalho e à preocupação com a manutenção de certas ordens, mantendo o erotismo como transgressão – isto é, possibilidades de desarranjo momentâneo e localizado, em certos aspectos sociais da vivência.
Mas e o demoníaco? “O movimento carnal é singularmente estranho à vida humana”. De modo que “aquele que se abandona a esse movimento não é mais humano, é, à maneira das feras, uma cega violência, que se reduz ao desencadeamento, que goza por ser cega e por ter esquecido”, diz Bataille (pg. 130). E então aí as barreiras colocadas em volta da sexualidade são rompidas violentamente, e a morte passa de direção distante a uma espécie de buraco negro vertiginoso, sugando e dissolvendo a vida.
Uma violência tão divinamente violenta eleva a vítima acima de um mundo chato, onde os homens levam sua vida calculada. Em relação a essa vida calculada, a morte e a violência deliram, não podendo se deter diante do respeito, da lei, que ordenam socialmente a vida humana. (pg. 106)
Surge então o domínio da obscenidade: perturbação ou desordem dos corpos quanto à possessão de si; dissolução de suas individualidades para dar lugar a um turbilhão de impulsos tumultuados. Lembremos da cena da boate: já há um ambiente hedonista, um estado de maior confusão, com drogas, com uma sugestão de uma negação parcial do individual (é escuro, as pessoas aparecem em sombras, há uma certa equivalência no clima de pegação, em que todos desindividualizam uns aos outros). Mas isso segue na beleza do inalcançável, em algo controlado, prestes a desligar e normalizar (nas conversas, na de que há uma hora de ir embora), e que se coloca, mesmo na orgia, decepcionantemente longe dos limites do contínuo. Exceto se o demoníaco intervém. E ele surge com uma transgressão diabólica, isto é, já inumana: Ryou cortando loucamente as pessoas com uma garrafa.
E então começa a escapar para dentro da vida social, aqui e ali, fragmentos obscenos – nas formas demoníacas da violência extrema e sexualidade exagerada, mas também tingindo as frustrações da vida do trabalho com um tom erótico. Isso é impressionante no latido masturbatório de Miko, onde há uma certa possessão e delírio, mas que por ausência de uma intervenção direta do demoníaco, fica restrito a um aspecto não resolvido da interação social.
Mas então e o Devilman, que tem o coração de homem? Ele canalizou para o trabalho e a manutenção da vida toda a energia tumultuosa que tinha. De modo que, após alguns episódios, sublima seu tesão contínuo em amor, e seus impulsos desenfreados em ódio aos maus demônios. E após isso, ocorre uma virada na série, em que o erotismo visual some e de repente a sexualidade é algo já resolvido ou plenamente subordinado. Nesse ponto, ao menos pra mim, decai e deixa de ser incrível.
O ponto de virada se dá quando a Miko endemoniada é ameaçada e estuprada por um transeunte. Ali, o sexo aparece como algo meramente animal, sem erotismo algum. A morte, que coroa a cena e os ronda, tornou-se próxima demais. Não é um sonho prazeroso, um desejo estranho, ou um delírio assustador mas envolvente. É só uma coisa. E então, a tenção sexual que tingia os personagens e os demônios entre si é abandonada. Isso já foi resolvido no primeiro arco, talvez tenha pensado Yuasa: agora, para conduzir a história com mais clareza, é preciso focar na guerra e na tragédia.
Mas por que a guerra? É certo que o diabo promove o caos generalizado através da capitalização do medo. E essa energia explosiva é então conduzida como violência gratuita. Como os humanos caem em loucura angustiada, uma vez que vêem-se envoltos em assassinatos e conspirações, eles se organizam para manter alguma ordem e tarefas que remetam a organizações – a guerra é um trabalho. Não basta querer afirmar desesperadamente sua identidade contra o medo da dissolução do demoníaco (agora sem o elemento sedutor do erótico, abandonado e de toda forma incompreendido pela maioria); não basta tentar massacrar a possibilidade de que existam esses outros. É preciso organizar essa paranóia (eu não sou demônio, mas e você?), de modo a reduzir os danos, evitar o desvario (mesmo já estando louco). Nesse sentido, a guerra é já a única vitória possível. Não há mais ganho algum na morte, mas se for possível ao menos calcular as perdas, algo está salvo. Justifica-se o jubilo na crueldade e selvageria com uma medida – a defesa da humanidade, e com o auto-engano (eu sei o que estou fazendo, afinal há um propósito).
É interessante lembrar que o diabo não é um demônio mas um anjo. E na sua assepsia ele parece contaminar os demônios. Essa contaminação é o que justifica como é afoito, pois sem isso, existiria nos demônios algo de incongruente. Eles são levados rapidamente ao frenesi do sexo e da morte. Dessa forma, rapidamente se extinguiriam, não tendo impulsos de manutenção de forma de vida, que normalmente colocam a violência subordinada ao trabalho e a sexualidade à reprodução. Conservavam-se como espíritos, comportando-se como vírus, a espera de hospedeiros. Mas não se vê um hospedeiro dar origem a vários demônios na série. Eles deveriam rapidamente desencadear sua própria extinção, deixando Ryou sozinho, não fosse o clima de guerra, com sua placidez libidinal. E só assim consigo entender que Deus intervenha de alguma forma, sem parecer por pura pressa.
O cenário então acaba sendo dominado pela morte, que é a morte humana, dissociada do sexo, e que se contrapõe à irmandade das pessoas, com sua paranóia. O demoníaco, anti-familista, não está mais lá. Mas há uma boa excessão. O filho Taro, sucumbindo à sua transformação, não podendo ainda desenvolver sua violência e suas genitais, por ser uma criança, vira uma grande boca, que suga sua própria mãe, devorando-a. O pai assiste chocado, talvez na única cena obscena de dissolução do segundo arco.
{“O Erotismo”, Georges Bataille. Trad. Fernando Scheibe. Ed. Autêntica, Belo Horizonte, 2013}
{DEVILMAN Crybaby, série animada de 10 episódios de 25 min., dir. Masaaki Yuasa a partir do mangá de Go Nagai, 2018, recomendação 7/10}