Gurren Lagann: Prometeanismo

Há um filme estranhamente empolgante de 3 horas, cujo tema é, aparentemente, as palestras de Heidegger sobre o poema Der Ister, de Friedrich Hölderlin e sua relação com o rio Danúbio. Em sua primeira parte, o filósofo Bernard Stiegler fala sobre o mito de Prometeu: o titã Epimeteu, ao distribuir as qualidades para formar os seres mortais, esquece-se do homem. Tudo estava equilibrado, mas e aquele animal informe, feito na escuridão do barro? O que fazer? Prometeu rouba o fogo de Hefesto, símbolo da técnica e do poder dos deuses, e dá à humanidade, que assim, conhece o dia. E como a técnica não era propriamente uma qualidade, mas uma ferramenta de constante aquisição e melhoria de qualidades, a humanidade conseguira se impor como espécie dominante, e aquela mais próxima aos deuses.

Em Gurren Lagann, a técnica – o fogo dos deuses – é retratada como “o poder da espiral”, um poder capaz de gerar poderes cada vez maiores; uma cibernética, retro-alimentando potência. De fato, a espiral é tanto uma força em si, meio que, na sua forma inicial e primitiva da broca, permite sair da escuridão das cavernas e da superstição e enfrentar a tarefa de formar uma sociedade global, quanto uma ferramenta de apropriação: com ela é possível criar combinações cada vez mais complexas e maiores, unindo o pequeno ao grande, e fazendo do todo mais que as partes.

A espiral, portanto, acelera. Ela quer rasgar os céus. A Terra é uma armadilha. Maximun jailbreak: a maior escapada de todas envolve explodir o futuro em pedaços. O primeiro antagonista, Lorde Genoma, conquista a morte, mas falha em invadir os céus. Não sendo possível o projeto da “tarefa comum” (a grande expansão sideral, vide o texto de 1906 de Nikolai Fedorov, e a fala mais marcante de Viral: “junte-se ao inimigo para esmagar o destino”), resta o tédio da tarefa interna e da manutenção de uma estabilidade possível. Sua espiral chega a possibilitar inclusive a técnica da criação de qualidades, nos animais-besta, mas não a imprevisível montagem em exponencial da auto-superação, reservada aos humanos. Por isso é preciso constante supervisão pela força de aniquilação da superfície. Um descuido, e a taxa de aumento de poder aumenta rápido de mais e já é tarde.

Mas existe um outro componente necessário para romper com as formas fixas da escassez de recurso e alimentos e da religião como forma social dominante, saindo do subterrâneo; e também para enfrentar os inúmeros percalços na jornada de conquista da superfície e de expansão celeste. E esse componente é a estupidez. É como dizem, em palestras motivacionais para promover a criatividade e a inovação: “é preciso saber a hora de parar de aprender“.

Mas é claro, a estupidez em si mesma não é suficiente, é preciso método. E é por essa razão que Kamina não pode ser o personagem principal da série, mas o catalizador, aquele a canalizar a força propulsora da técnica (e é por isso que ele tem que ser deixado para trás, ao mesmo tempo que conservado – e é por isso que suas núpcias são canceladas com aviso prévio e de modo tão óbvio). Kamina é assim, o desvelar de um destino, como diria Heidegger: ele permite ao homem futuramente entender a técnica como destinação; ele coloca em movimento a lógica da armação (do gestell), que irá resultar na formulação da スパイラル・ネメシス (nemesis da espiral): a tecnologia moderna coloca o mundo e depois o universo como reserva potencial, como material para novas expansões, cada vez maiores.

Mas estaria Heidegger e a tribo dos anti-espirais corretos? Gurren Lagann não aposta na superação da estupidez, isto é, no desenvolvimento prometeanista do que há de inumano no humano e na utilização da tecnologia como modo de reconstrução e aprimoramento do nosso ser. Antes, afirma a interrogação. Nós não sabemos. Na verdade, nós não temos como saber. Não somos únicos, nem os primeiros, mas ainda não tentamos o suficiente.

Mas essa afirmação precisa da alternativa anterior como antagonista, afinal é um 少年 repleto de lutas. E então, é fortuito que os anti-espirais, ao planejar a conservação do universo, tenham fixado-se como uma tribo com uma consciência coletiva e que favorece formas abstratas. Além do expediente surpreendente de introdução de formas 3D absolutamente incongruentes na série, há a importante contraposição entre isso e a aparição de formas-rosto e antropomorfismos em tudo o quanto é criação humana, ligado ao tropo dos mecha. Uma das formas de superação do humano é o pensamento coletivo interiorizado dos anti-espirais; por isso, a libertação de seu jugo vai se dar por uma extrema individualização interior, que resiste a tudo e é propulsionada pelo amor, além de uma clara externalização do conhecimento nas combinações de capacidades técnicas, mas que não modifica em muito essa interioridade.

Ademais, Gurren Lagann consegue em um nível metalinguístico trabalhar a expansão que tematiza, ao continuamente se superar em termos de animação, quantidade de elementos e sensação de grandiosidade durante a série.

{天元突破グレンラガン, série de 27 episódios, 2007, nota 9/10}

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Um comentário sobre “Gurren Lagann: Prometeanismo

  1. o vídeo-comentário do best guy ever [https://www.youtube.com/watch?v=VIiX4TL2_vg] enfatiza dois pontos que eu talvez tenha deixado passar: 1. a similaridade entre as hélices do dna e a espiral; 2. a importância de rossiu pro desenvolvimento da série.

    o argumento é que a espiral tem dois lados, como a hélice do dna, sendo pólos que uma vez desequilibrados levam à aceleração catastrófica/kamina/individualismo ou então ao opressão terrível/rossiu/coletivismo, e como é necessário equilibrar ambos (simon e evolução de rossiu, que consegue dialeticamente superar seus semelhantes – padre, lorde genoma, anti-spirals, e combinar ambas características.

    outro ponto justo é mostrar como a série é estruturada em 3 ou 4 níveis, dependendo de como vc olha, kamina/padre, simon/lorde genoma, gurren/anti-spiral, rossiu\simon.

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