Álbuns de 2018

A. Justificativa

Final de ano é hora de complementar minha lista de recomendações de álbuns com coisas recomendadas por outros. Isso me leva a ouvir algumas centenas de coisas, de ouvideiro. Geralmente um processo sofrido: há listas que não chegam a fornecer nem ao menos um álbum que eu realmente goste. Mas há algo de interessante nisso: a percepção de o quanto nós fazemos a música que queremos escutar, mas outros não o fazem… E assim, como complementou o colega J.-P. Caron, damos também o que os outros não querem.

Isso dá o que pensar. De certa forma, esse momento do ano me fortalece a auto-estima de artista: as coisas que produzo parecem mais necessárias. Dar o que não se quer carrega a possibilidade de uma mudança maior no querer. Não porque seja necessário contrariar o que é valorizado por aí, mas porque existe valor na coexistência não-excludente entre grupos de valores diferentes (na disjunção dos valores). Dito isso, não quero exagerar. Quem sabe vocês não acham a minha seleção um tanto palatável?

B. Completos

Herbert Baioco continua com suas explorações de modos de obter música de fontes inusitadas (a tal da sonificação). A aparente ingenuidade das propostas dá lugar a uma lógica alienígena, em que não funcionar se torna um jeito de funcionar e a falta de eficiência se transforma na maneira específica (eficiente) de atingir o objetivo. Atmosfera de Sombra e Luz registra a luminosidade de certos ambientes através de um sensor LDR, ligado como um microfone em um gravador de áudio.

Eu não diria tanto que Breath for Organ, de Eva-Maria Houben, exige paciência, mas que a música nos torna ouvintes pacientes, transportando-nos para uma temporalidade de cuidado e disponibilidade. Como em outras produções ligadas ao grupo Wandelweiser, há aqui e ali ruídos residuais; o som gravado nos limiares do audível aceita com um calor humano especial essas imperfeições, que sob o viés da aceitação, tornam-se especialmente simpáticas. A música surge organicamente do ar passando por tubos de um velho órgão de igreja.

Death Raving, do meu duo com J.-P. Caron, Epilepsia, foi gravado em 2013 e finalmente mixado por Pedro Durães em 2017 e lançado em janeiro de 2018. Assim, foi “meu lançamento do ano” (literalmente, com certo tom irônico pelo hiato em relação à sua concepção). O duo de noise tem a peculiaridade de trabalhar sempre a partir e em torno de sons obtidos da corrente elétrica de 60Hz, quando se usam luzes dimerizadas e estrobos. Primeira incursão de Durães na música de ruído, fez me acompanhar sentadinho ao seu lado as sessões de mixagem. Ademais, gosto muito da arte do álbum, pelo Mário Brandalise. Os nomes de faixa me dão orgulho também, evocando O Incal (Jodorowsky/Giraud), Cyclonopedia (Negarestani) e Georges Bataille, em geral: Delirando Mortes; Ovo Negro; Sonhos na Xerodrome; Pombas, Sexo, Hipnose; Tripofobia.

Happy Rhodes é uma cantora-cancioneira do mesmo estilo e época (apenas alguns anos posterior) que Kate Bush, e Ectotrophia é uma coletânea do começo de sua carreira, anos 80. Dream pop de harmonias bem delineadas e vocal cativante com letras cristalinas.

O primeiro álbum de Daphine Jardin, German Lounge Vol. 1: Midnight Clock, funciona supostamente como um relógio para fanáticos por J. S. Bach como eu. Começando à meia noite com o prelúdio e fuga em dó maior do Cravo Bem Temperado Vol. 1, ele segue, de hora em hora, perfazendo versões fantasmagóricas (de um “classicismo impossível) da sequência cromática prevista no livro de partituras: à 01h, estaremos em dó menor, às 02h, em dó sustenido maior, às 03h,em dó sustenido menor… Para sincronizar e passar o dia com essa presença assombrada.

METANOIA traz um trio por Henrique Vaz, Igor Medeiros e Marcelo Campello e registra e ordena uma sessão de improvisação livre em que provavelmente Vaz (ao menos, é assim que imagino) imprimiu um tom interminável e profuso de situações e variações. Com a seleção a experiência de escuta se concentra em pérolas irrequietas, mas que curiosamente mantém, como background de seus gestos, certa ligação com uma música de ritmos, notas e repetições.

Bruno Hiss continua suas explorações vocais em O, montando grupos de si mesmo, em que gestos simples se acumulam em texturas densas, animais vocais a encontrar seus pares. Gosto pela crueza e insistência. A mixagem cuidadosa de Alexandre Marin, vai suavemente facilitando a transição das elocuções aos coros.

Tanto a energia rock improvisativa explosiva de Oral (Mofjell-Lucatteli-Zenícola), em seu álbum auto-intitulado, quanto a parcimônia de caos com nome, de b-Aluria, ao combinar poesia e ruídos telúricos, deixam-me bastante feliz. Mas não consigo me convencer de que ambos não sejam curtos demais.

Imagino que Miazzo chamou a pérola vapor-wave brazuca, fiel às eccojams, de QTV, para articular um gracejo com o selo que o publicou (de mesmo nome), junto à ideia de “ver Tela Quente”. O álbum, dentro da obsessão do artista por loops repetidos sem direção, às vezes com cortes imprecisos e outros procedimentos codificadamente vaporosos, articula uma coleção de fragmentos nostálgicos de quando éramos seres que viam televisão. Nisso, esbarra na sobrevivência atual desse universo, evocando trilhas de bares e rádios que ficaram congelados no tempo. Aquela podreira que é familiar a ponto de fazer parte de você.

Por já ter feito experimentos com microfones de contato e gelo, almejava algum dia ouvir gravações de campo empolgantes de congelamentos e derretimentos. Pois que um grupo da universidade ETH Zurich, sob o nome Institute of Landscape Architecture, conseguiu da geleira de Morteratsch, a realização desse sonho, em Melting Landscapes.

C. Pedaços

  • All the Rivers, solo ao vivo da trompetista Susana Santos Silva, tem de abusar no reverb e joga com ele, em suas ondulações e jogos de planos, começando de modo muito cativante, mas tentando de tudo e se perdendo.
  • Andrelina brinca com a ideia de samba no pé como ninguém e embora eu considere um pouco cansativo Maga Bo Apresenta Samba de Coco Raízes de Arcoverde não deixa de ser incrível, além de mostrar como o tradicional pode ser levado ao estúdio.
  • God Pussy não para nunca, e Auto-Ajuda ou Auto-Mutilação? é uma daquelas faixas consistentemente nervosas de noise (de raiz).
  • Maria Beraldo ataca com um álbum MPB arrojado e modernoso, e Da Menor Importância possui um acompanhamento acelerante-desacelerante dos mais elegantes já ouvidos.
  • Mais um ano e uma indicação de blues do deserto não podia faltar, então deixo Heyyeya, do cancioneiro Sidi Touré, de Mali. E como continuo recomendando o pop da Etiópia aos colegas, deixo aqui também a coletânea do Ayalew Mesfin, Hasabe.
  • Jacobs Ladder, de Noah Creshevsky, a alguns anos é uma das suas colagens de minha predileção, e a obsessão por movimentos escalares do autor atua fortemente nela. Foi (re)lançada em um compilado esse ano.
  • Uma coletânea de rap do mundo França traz algumas pérolas, como La Logique du Pourrissement, de Joby Bernabé, da Martinica.
  • Mambo Egípcio faz-se dentro de uma abordagem surf music, em um disco festivo do Sonido Gallo Negro, mas nem sempre frenético.
  • Nunca gostei da Mary Halvorson como improvisadora, um pouco lenta e desanimada. Entretanto, seu álbum de composições Code Girl é bastante bom e possui ao menos uma canção emocionante, aproveitando seu estilo cru, suave e simples: Pretty Montain.
  • Pedra Preta tem em suas primeiras quatro faixas de Teto Preto influências divertidas de aggrepo, com um uso bastante interessante de camadas com reverberações diversas, vide Safo. Ademais, o canto de diva desafiadora dá um tom diferencial ao conjunto.
  • Seraphic Light part II, do trio de jazz formado por Daniel Carter, William Parker, Matthew Shipp, tem um dinamismo cativante e linhas de piano eletrizantes. Elas relaxam, mas voltam na parte III, para quem animar de achar o resto do álbum.
  • Soundscape China pt. 1, de Kink Gong, desenvolve um outro jeito de misturar gravações de campo com sons diversos – ao trabalhar em camadas: ambiente, som de rádio, eletroacústica gestual; um resultado surreal interessante.
  • Svårmod, do combo formado por Sofia Jernberg, Mats Gustafsson, Kjetil Møster, Anders Hana e Greg Saunier, tem algo de único na guitarra stoner borradona em meio ao fusion comportado dos outros, acompanhado por vocais aspirados.
  • Os roqueiros do Daughters abusam em vocais fugazzeiros, semi-cantados, o que me impede de gostar a valer de You Won’t Get What You Want, que acaba soando reclamão. Mesmo assim, The Flammable Man e The Reason They Hate Me são insistentes e empolgantes.
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